Friday, September 08, 2006

O Verão que era e o Verão que é

Lembro-me bem de como antes era o Verão. Era uma verdadeira instituição. Era um tempo de férias, três meses e meio delas, para ser mais exacto. Todos ansiávamos a chegada dessa época, antevendo mentalmente as roupas que finalmente poderíamos usar e os milhares de coisas que podiam ser feitas, debaixo do tórrido calor de um Verão à séria.

Estava eu no secundário e a mais excitante novidade na Lisboa de então, eram os termómetros digitais em dois ou três pontos da cidade. Como um dos ditos ficava a poucos quarteirões do colégio, a chegada do Verão era efectivamente comprovada por várias visitas diárias ao mesmo para aferir das qualidades do Verão que chegava, medidas pela proximidade da mágica marca dos 40º. E nos Verões de então, tal acontecia mesmo. Chegámos a festejar uns fantásticos 42º medidos ali mesmo à nossa beira, no termómetro gigantesco pendurado na linha do comboio por cima da Av. Da República. Era um verão à séria!

Com a chegada do Verão, era altura de trocar os amigos do colégio pelos primos e os amigos destes. Era uma troca curiosa esta. Saía do Campo Pequeno e rumava para o “ameno” Alentejo, de onde, invariavelmente, regressava três meses depois (interrompidos apenas por uma quinzena no Algarve) com um sotaque à Verão, ou Alentejano, para os mais puristas.

Eram tempos de verdadeiro aproveitamento da estação. A actividade mais habitual consistia em pedalar pelos campos, com o farnel preparado pela minha tia no “suporte” da bicicleta, sob um inclemente sol Alentejano, procurando cada dia uma nova barragem onde nadar e pescar, ou um jacto de rega nos campos de girassóis, que nos regasse também enquanto descansávamos deitados no chão. Se efectivamente a pesca fosse mais que uma mera diversão e conseguíssemos enganar algum Achigã, Carpa ou Barbo, então nessa noite havia fogueira e peixe grelhado.

Eram meses de novas experiências, porque todos os anos havia actividade novas. Um ano, o meu tio tinha comprado um rebanho de ovelhas e ao meu primo e a mim, cabia a “dura” tarefa de as levar ao campo de pasto ao anoitecer; claro que geralmente fazíamos corridas montados nas ovelhas, até cair ao chão, ou até o macho do rebanho se fartar e nos atirar ele próprio. Outro ano, havia a enfardadeira novinha do tio e não descansámos enquanto não fomos com ele, passar dias inteiros empoleirados nos gigantescos guarda-lamas do tractor, a ver aquela máquina que engolia filas intermináveis de cereal ceifado, espantando à sua frente assustados coelhos. Eram dias de uma diversão que não se explica, pela emoção dos campos de restolho a perder de vista, os mergulhos nas barragens, os almoços de atum em lata comidos debaixo de um chaparro, antes da muito Alentejana sesta. Tudo acompanhado de quilos de poeira e palha, entranhados na roupa, na pele e no cabelo. Cheirava a palha, a Alentejo e a Verão.

As noites, essas jamais as esquecerei; ficávamos sempre no terraço da casa, deitados sobre um colchão, com um cobertor aos pés na eventualidade de uma madrugada mais fresca e adormecia sempre a olhar as estrelas.

Este é o Verão que era. O contraponto às amenas estações intermédias e ao austero e civilizado Inverno, passado na cidade. Uma peça importante daquilo que sou hoje.

O Verão que é, já não é o Verão que era. No Verão de hoje, reduziram as férias a duas ou três semanas. A esta distância, 40º parecem irreais e só se formos a alguma cidade do Norte de África ou do Médio Oriente.

No Verão de hoje, as noites são frescas e quando saímos à rua, não sabemos se antes do fim do dia ainda vai chover. As pessoas continuam a trabalhar, não se dando conta de que é Verão. O stress é quase o mesmo do resto do ano e apenas o mês de Agosto, ainda que passado em Lisboa, se aproxima dos tempos de outrora, pelo reduzido número de pessoas que por aqui andam.

No Verão de hoje, o meu primo já não está connosco e aos seus amigos, já nem os conheço. As ovelhas foram vendidas e a enfardadeira ganha ferrugem debaixo de um sobreiro. É quase como se o Verão estivesse fechado, à espera que alguém lhe pegue e o restitua ao esplendor de outros tempos. Ou se calhar, o Verão que é ainda é o mesmo; nós é que não.

3 comments:

KooKa said...

O Verão que é, é e não é mais o mesmo.

Lembro-me bem desse termómetro da Av. da República! Quando vinha da praia, os putos todos no autocarro em algazarra (eramos sempre às dezenas, os putos todos da praceta), acalmavamos sempre ao passar por baixo do comboio para, automatica e sincronizadamente, olharmos para o termómetro.
Não me lembro dos 40º...lembro-me apenas dos 33º. Cada vez que se fala em 33º, vem-me sempre à memória a imagem do dito termómetro, preto, com os dígitos amarelos, grandes e ligeiramente arredondados, mostrando primeiro as horas e depois a temperatura.

O Verão começava sempre com um mês inteiro de praia, sem pais, só os putos todos da praceta e uma ou duas senhoras que nos levavam. Saíamos do comboio, passavamos por baixo do túnel e iamos às bolas com creme (deliciosas como só na praia são). Chegavamos ao toldo de sempre (o 316), e começavam as aventuras. Sempre diferentes todos os dias, todos os anos.
Havia dias em que os rapazes levavam na bagagem fatos de banho das raparigas que acabavam por vestir e faziam "furor" na praia.
Recordo os mergulhos do pontão, mesmo sem saber nada. Ir até à última bóia, agarrada à corda, sempre ser medo de me afogar, mesmo nadando como um parafuso.

Depois desse mês, vinham 15 dias fora de Lisboa, invariavelmente no campo, todos os anos num sítio diferente. As famosas colónias de férias =D também as aventuras e os cheiros e as vistas eram diferentes de ano para ano.

Recordo-me que no restante tempo em que não se ia para lado nenhum, ficavamos na praceta até altas horas da noite, a andar de bicicleta, a jogar às escondidas, a jogar aos "centros", onde eu era a única rapariga no meio de muitos matulões (era com cada bolada...lol).

E no início do Verão, durante os santos populares, faziamos sempre fogueiras no meio do jardim da praceta, e saltavamos e cantavamos e riamos e eramos felizes.

Depois crescemos.
E de todos os putos da praceta não sei de nenhum...

KooKa said...

Ups...era para ser um comentário...mas depois de aberto o baú das recordações, quase dá para ser um post =)

ME said...

Chamava-lhes férias grandes, fartavamos-nos de crescer e no ano seguinte as fardas do colégio estavam todas apertadas!!!