Naquele dia, ‘ele’ decidiu falar-nos e lá de cima, do alto do monte Canaa, perto do povoado onde vivia Pedro, ‘ele’ dirigiu-me a palavra.
- Que te enfada Miguel?
- Enfadam-me os homens – respondi – enfadam-me os homens…
- Enfada-te o que fazem?
- Não. Enfada-me o que não fazem, o que não sentem, o que não pensam.
- E é só?
- Não! Sobretudo, enfada-me que olhem o mesmo que eu, mas apenas sejam capazes de ver o que desejam.
- Mas Miguel, não vives tu entre os homens desde sempre?
- Sim.
- E desde sempre sabes que é deles a liberdade de fazer o que desejam, com o que ‘ele’ lhes deu.
- Sabes – disse por fim – é por isso que não acredito n’ele. E nem em ti.
Friday, October 27, 2006
Friday, September 22, 2006
Chega Aqui
Chega aqui,
senta-te do meu lado e partilha comigo este momento
escuta o vento soprar, e vê comigo os cereais dançar,
Entra em mim, vê o que eu sinto
e sente o que eu vejo
Aperta a minha mão na tua
faz-me sentir amado
e pequeno, por uma vez protegido e mimado
Deixa-me baixar a guarda,
descansar uns momentos
sentir que posso ser eu e despir esta farda
Senta-te do meu lado,
olha os mesmos campos
e dança comigo a mesma música que os embala
Ou, simplesmente,
Olha os meus olhos e diz-me o que vês,
Diz-me se o azul é o do céu ensolarado, ou do escuro mar profundo
Se estão transparentes ou turvos
Se brilham ou estão enevoados,
Diz-mo por favor, preciso ter a certeza que sabes o que sinto.
senta-te do meu lado e partilha comigo este momento
escuta o vento soprar, e vê comigo os cereais dançar,
Entra em mim, vê o que eu sinto
e sente o que eu vejo
Aperta a minha mão na tua
faz-me sentir amado
e pequeno, por uma vez protegido e mimado
Deixa-me baixar a guarda,
descansar uns momentos
sentir que posso ser eu e despir esta farda
Senta-te do meu lado,
olha os mesmos campos
e dança comigo a mesma música que os embala
Ou, simplesmente,
Olha os meus olhos e diz-me o que vês,
Diz-me se o azul é o do céu ensolarado, ou do escuro mar profundo
Se estão transparentes ou turvos
Se brilham ou estão enevoados,
Diz-mo por favor, preciso ter a certeza que sabes o que sinto.
Wednesday, September 20, 2006
Viagem
O relógio digital no centro do tablier marcava 3.24h. O carro deslizava veloz e solitário pela auto-estrada. O rádio estava ainda mudo, porque os seus pensamentos fervilhavam ainda num turbilhão aparentemente sem saída e ele queria escutar tudo o que se passava dentro da sua cabeça.
Conduzia depressa, mesmo sem se dar conta. Sem sequer pensar nisso, tentava deixar entre si e os seus problemas a maior distância possível, alheio à inutilidade da distância na resolução de tudo o que acontecera. O coração batia forte e conseguia senti-lo no peito, ameaçando explodir a cada batida.
Flocos de neve começaram a colar-se ao pára-brisas e obrigaram-no por um instante a desviar a mente do que o atormentava. Ligou as escovas na velocidade máxima e decidiu abrir o vidro. O vento gelado atingiu-o como um objecto cortante, mas esse instante com o pensamento nas coisas triviais, soube-lhe bem e decidiu prosseguir com o vidro aberto... pelo menos até não suportar mais a dor gelada, o que aconteceu uns 3kms mais à frente.
Voltou a fechar o vidro e tocou no ‘on’do rádio. Tinha um cd de Radiohead que deixou a tocar baixo. À mente regressaram os eventos que desencadearam esta viagem. Na verdade não sabia bem o desfecho da viagem... sabia que tinha que se sentar no carro, carregar no acelerador partir. Não tinha decidido o destino daquela viagem e pelo menos até a luz laranja da reserva de combustível acender, não se ia preocupar com isso.
Sentia uma dor insuportável no peito, que queria libertar pisando mais forte o acelerador..180...190...210km/h, o som do vento fê-lo olhar para o conta kilómetros, mas não abrandar. Sentia-se cobarde pela fuga, mas nem tinha ainda a certeza de que fosse um fuga. Podia estar apenas a tentar encontrar o sentido da sua existência, ou o bálsamo que lhe aliviasse o sofrimento. Não sabia, essa era a verdade.
Alguns kilómetros mais à frente, teve uma nova chamada à realidade, as luzes intermitentes e rotativas de carros de polícia e uma ambulância fizeram-no abrandar a marcha. Quase parou... estava um carro capotado no centro da via, antecedido por indesmentíveis traços de despiste pintados a negro na alva neve que cobria o asfalto. O polícia obrigou-o a deter a marcha e depois de lhe pedir para abrir o vidro pediu paciência, mas que teria de aguardar que removessem o carro. Tentando apenas parecer interessado, perguntou pelos ocupantes; era uma só pessoa, tinha falecido. Demasiado absorto na sua dor nem realizou as palavras do polícia.
Quando finalmente o deixaram avançar, a sua vista cruzou o carro destruído em cima do reboque e recebeu um soco no estômago, daqueles que nos deixam estendidos no tapete até bem depois do árbitro contar até 10. Instintivamente parou e procurou a placa de matrícula no meio da chapa retorcida.
Debruçou a cabeça sobre o volante e chorou convulsivamente. Desligou o carro compreendendo que a sua viagem terminara e adormeceu em paz.
Conduzia depressa, mesmo sem se dar conta. Sem sequer pensar nisso, tentava deixar entre si e os seus problemas a maior distância possível, alheio à inutilidade da distância na resolução de tudo o que acontecera. O coração batia forte e conseguia senti-lo no peito, ameaçando explodir a cada batida.
Flocos de neve começaram a colar-se ao pára-brisas e obrigaram-no por um instante a desviar a mente do que o atormentava. Ligou as escovas na velocidade máxima e decidiu abrir o vidro. O vento gelado atingiu-o como um objecto cortante, mas esse instante com o pensamento nas coisas triviais, soube-lhe bem e decidiu prosseguir com o vidro aberto... pelo menos até não suportar mais a dor gelada, o que aconteceu uns 3kms mais à frente.
Voltou a fechar o vidro e tocou no ‘on’do rádio. Tinha um cd de Radiohead que deixou a tocar baixo. À mente regressaram os eventos que desencadearam esta viagem. Na verdade não sabia bem o desfecho da viagem... sabia que tinha que se sentar no carro, carregar no acelerador partir. Não tinha decidido o destino daquela viagem e pelo menos até a luz laranja da reserva de combustível acender, não se ia preocupar com isso.
Sentia uma dor insuportável no peito, que queria libertar pisando mais forte o acelerador..180...190...210km/h, o som do vento fê-lo olhar para o conta kilómetros, mas não abrandar. Sentia-se cobarde pela fuga, mas nem tinha ainda a certeza de que fosse um fuga. Podia estar apenas a tentar encontrar o sentido da sua existência, ou o bálsamo que lhe aliviasse o sofrimento. Não sabia, essa era a verdade.
Alguns kilómetros mais à frente, teve uma nova chamada à realidade, as luzes intermitentes e rotativas de carros de polícia e uma ambulância fizeram-no abrandar a marcha. Quase parou... estava um carro capotado no centro da via, antecedido por indesmentíveis traços de despiste pintados a negro na alva neve que cobria o asfalto. O polícia obrigou-o a deter a marcha e depois de lhe pedir para abrir o vidro pediu paciência, mas que teria de aguardar que removessem o carro. Tentando apenas parecer interessado, perguntou pelos ocupantes; era uma só pessoa, tinha falecido. Demasiado absorto na sua dor nem realizou as palavras do polícia.
Quando finalmente o deixaram avançar, a sua vista cruzou o carro destruído em cima do reboque e recebeu um soco no estômago, daqueles que nos deixam estendidos no tapete até bem depois do árbitro contar até 10. Instintivamente parou e procurou a placa de matrícula no meio da chapa retorcida.
Debruçou a cabeça sobre o volante e chorou convulsivamente. Desligou o carro compreendendo que a sua viagem terminara e adormeceu em paz.
Friday, September 15, 2006
My favorite things
Hot chocolate
Happy endings
A beautiful smile
A room with a view
Candle light dinners
To hear ‘I love you’
Holding your sweet hand
Dreaming that I have wings
These are a few of my favorite things
Happy endings
A beautiful smile
A room with a view
Candle light dinners
To hear ‘I love you’
Holding your sweet hand
Dreaming that I have wings
These are a few of my favorite things
Wednesday, September 13, 2006
A sala
Abriu os olhos lentamente, a despertar de um sono profundo. Uma névoa na vista não o deixava distinguir os objectos à sua volta o que o deixou um pouco confuso.
Aos poucos, a visão tornou-se menos turva e quanto mais nitidamente via, maior a sua confusão. Mas que sítio era este em que estava? O que estava ali a fazer? Como fora lá parar?
Estava num quarto branco. Completamente branco, sem uma janela, sem um mínimo toque de outra cor. Apenas quatro paredes a formar um espaço cúbico, liso e apenas umas lâmpadas fluorescentes brancas colocadas no tecto quebravam a lisura do que o rodeava.. Ergueu-se ligeiramente e percebeu que estava numa cama de ferro, branca, coberto com um lençol, também ele branco.
Sentiu algo a prender-lhe o braço esquerdo e, para sua surpresa, viu um catéter introduzido na veia, ligado por um tubo plástico a um saco de soro pendurado sobre a cama. Afinal parecia estar num hospital.
Mas como teria ido ali parar? A última recordação que tinha era de se ter deitado na noite anterior. Não imaginava o que pudesse ter acontecido, nem quanto tempo teria decorrido.
Dois eléctrodos no peito e um num dedo da mão direita, ligavam-no por fios a um aparelho que emitia um regular beep-beep. Isso não o deixou particularmente confortado.
Excepção feita ao beep da máquina atrás de si, não se ouvia nenhum outro som. Gritou, chamou por alguém, mas não obteve resposta, apenas o beep-beep a quebrar o silêncio a intervalos regulares.
Tomou então consciência de uma dor aguda no peito e levando as mãos ao local, percebeu uma costura. Mas que raio se estaria a passar? Decidiu virar-se para trás e encarar a máquina dos irritantes beep-beep. O que viu fê-lo empalidecer tanto quanto as paredes do quarto. Uma linha de cor verde – a única cor no quarto todo – atravessava o monitor, mas a linha era plana! Olhou de novo e confirmou a pequena inscrição junto à linha ‘heart rate’... como era possível ele estar a ver a sua própria linha do coração plana? Isso significaria que estava morto! Não, não era possível. Mas... por outro lado, explicaria o absurdo da situação. Estaria ele numa sala do purgatório? Não, não podia ser.
Foi interrompido pelo som de passos... daquilo que antes parecia apenas uma parede branca, abriu-se uma porta e entrou um homem alto de meia-idade. Era magro, de rosto afilado e nariz aquilino, cabelo curto, escuro e penteado para trás com gel. Tinha uma roupa branca vestida, o que não causou estranheza. A visão de um estetoscópio ao pescoço trouxe-lhe um alívio indescritível, afinal era um médico.
- Sr Doutor, por favor, onde estou? Que se passou?
- Ah, vejo que já acordou, óptimo.
- Mas que se passou, onde estou eu? Porque estou aqui deitado e porque é que aquela máquina tem a minha linha cardíaca plana?
- Calma, calma – retorquiu o médico – uma coisa de cada vez. Você foi trazido para aqui de urgência, esta noite. Foi-lhe diagnosticado um problema grave no coração e teve que ser sujeito a uma intervenção cirúrgica.
- Ao coração? Mas... eu nunca sofri do coração... que se passou? Que tiveram que fazer?
- Infelizmente, tivemos que lho retirar... estava estragado...
Aos poucos, a visão tornou-se menos turva e quanto mais nitidamente via, maior a sua confusão. Mas que sítio era este em que estava? O que estava ali a fazer? Como fora lá parar?
Estava num quarto branco. Completamente branco, sem uma janela, sem um mínimo toque de outra cor. Apenas quatro paredes a formar um espaço cúbico, liso e apenas umas lâmpadas fluorescentes brancas colocadas no tecto quebravam a lisura do que o rodeava.. Ergueu-se ligeiramente e percebeu que estava numa cama de ferro, branca, coberto com um lençol, também ele branco.
Sentiu algo a prender-lhe o braço esquerdo e, para sua surpresa, viu um catéter introduzido na veia, ligado por um tubo plástico a um saco de soro pendurado sobre a cama. Afinal parecia estar num hospital.
Mas como teria ido ali parar? A última recordação que tinha era de se ter deitado na noite anterior. Não imaginava o que pudesse ter acontecido, nem quanto tempo teria decorrido.
Dois eléctrodos no peito e um num dedo da mão direita, ligavam-no por fios a um aparelho que emitia um regular beep-beep. Isso não o deixou particularmente confortado.
Excepção feita ao beep da máquina atrás de si, não se ouvia nenhum outro som. Gritou, chamou por alguém, mas não obteve resposta, apenas o beep-beep a quebrar o silêncio a intervalos regulares.
Tomou então consciência de uma dor aguda no peito e levando as mãos ao local, percebeu uma costura. Mas que raio se estaria a passar? Decidiu virar-se para trás e encarar a máquina dos irritantes beep-beep. O que viu fê-lo empalidecer tanto quanto as paredes do quarto. Uma linha de cor verde – a única cor no quarto todo – atravessava o monitor, mas a linha era plana! Olhou de novo e confirmou a pequena inscrição junto à linha ‘heart rate’... como era possível ele estar a ver a sua própria linha do coração plana? Isso significaria que estava morto! Não, não era possível. Mas... por outro lado, explicaria o absurdo da situação. Estaria ele numa sala do purgatório? Não, não podia ser.
Foi interrompido pelo som de passos... daquilo que antes parecia apenas uma parede branca, abriu-se uma porta e entrou um homem alto de meia-idade. Era magro, de rosto afilado e nariz aquilino, cabelo curto, escuro e penteado para trás com gel. Tinha uma roupa branca vestida, o que não causou estranheza. A visão de um estetoscópio ao pescoço trouxe-lhe um alívio indescritível, afinal era um médico.
- Sr Doutor, por favor, onde estou? Que se passou?
- Ah, vejo que já acordou, óptimo.
- Mas que se passou, onde estou eu? Porque estou aqui deitado e porque é que aquela máquina tem a minha linha cardíaca plana?
- Calma, calma – retorquiu o médico – uma coisa de cada vez. Você foi trazido para aqui de urgência, esta noite. Foi-lhe diagnosticado um problema grave no coração e teve que ser sujeito a uma intervenção cirúrgica.
- Ao coração? Mas... eu nunca sofri do coração... que se passou? Que tiveram que fazer?
- Infelizmente, tivemos que lho retirar... estava estragado...
Tuesday, September 12, 2006
Na reunião
- Olá, bom dia, como estás?
Sigo indiferente, aceno ligeiramente com a cabeça e avanço em direcção à máquina do café. Carrego no botão, preparo o copo de plástico e inspiro profundamente.
Olho em redor. Está escuro e a chuva lá fora faz um ruído ensurdecedor no tecto metálico. Suspiro de novo. Por não estar em casa, na cama, a recompôr-me de uma noite curta, demasiado curta; por estar aqui, contrariado, à espera de pessoas de quem não gosto, para uma reunião que não queria ter.
Um discreto beep indica que o café está pronto. Agarro no copo de plástico com uma mão.
- Foda-se!
Queimo o polegar e o indicador. Enquanto pouso o copo à pressa e deixo os dedos debaixo de água fria corrente, penso no quanto desejava gritar e ir-me embora.
Avanço por fim para a sala. Empurro a porta e constato que ainda ninguém chegou. Escolho uma cadeira, ligo o portátil e enquanto ele arranca encosto-me para trás.
De repente abro os olhos e estou enfiado numa camisa caqui, com umas caças largas com bolsos laterais, umas botas de montanha e um chapéu. Caminho sozinho, com um enorme cão de raça indefinida a meu lado. Está calor, mas não demasiado. Há no ar um cheiro a deserto. Sorrio. Não preciso esforçar-me muito para perceber que estou no Atacama.
Caminho em passos largos em direcção ao Jeep preto estacionado ali. Salto para o interior e o enorme cão acompanha-me. Rodo a chave e acordo o rouco 6 cilindros. Arranco e sinto um arrepio de prazer enquanto o vento fresco da manhã me acaricia o rosto. Afago o cão, que me corresponde com uma lambidela. Naquele momento tenho pena dos pobres infelizes que vivem enclausurados em escritórios, espartilhados por um fato e uma gravata, na insensata convicção de que a felicidade depende de mais uns euros ao fim do mês.
E rio-me, por me saber um deles.
Sigo indiferente, aceno ligeiramente com a cabeça e avanço em direcção à máquina do café. Carrego no botão, preparo o copo de plástico e inspiro profundamente.
Olho em redor. Está escuro e a chuva lá fora faz um ruído ensurdecedor no tecto metálico. Suspiro de novo. Por não estar em casa, na cama, a recompôr-me de uma noite curta, demasiado curta; por estar aqui, contrariado, à espera de pessoas de quem não gosto, para uma reunião que não queria ter.
Um discreto beep indica que o café está pronto. Agarro no copo de plástico com uma mão.
- Foda-se!
Queimo o polegar e o indicador. Enquanto pouso o copo à pressa e deixo os dedos debaixo de água fria corrente, penso no quanto desejava gritar e ir-me embora.
Avanço por fim para a sala. Empurro a porta e constato que ainda ninguém chegou. Escolho uma cadeira, ligo o portátil e enquanto ele arranca encosto-me para trás.
De repente abro os olhos e estou enfiado numa camisa caqui, com umas caças largas com bolsos laterais, umas botas de montanha e um chapéu. Caminho sozinho, com um enorme cão de raça indefinida a meu lado. Está calor, mas não demasiado. Há no ar um cheiro a deserto. Sorrio. Não preciso esforçar-me muito para perceber que estou no Atacama.
Caminho em passos largos em direcção ao Jeep preto estacionado ali. Salto para o interior e o enorme cão acompanha-me. Rodo a chave e acordo o rouco 6 cilindros. Arranco e sinto um arrepio de prazer enquanto o vento fresco da manhã me acaricia o rosto. Afago o cão, que me corresponde com uma lambidela. Naquele momento tenho pena dos pobres infelizes que vivem enclausurados em escritórios, espartilhados por um fato e uma gravata, na insensata convicção de que a felicidade depende de mais uns euros ao fim do mês.
E rio-me, por me saber um deles.
Friday, September 08, 2006
O Verão que era e o Verão que é
Lembro-me bem de como antes era o Verão. Era uma verdadeira instituição. Era um tempo de férias, três meses e meio delas, para ser mais exacto. Todos ansiávamos a chegada dessa época, antevendo mentalmente as roupas que finalmente poderíamos usar e os milhares de coisas que podiam ser feitas, debaixo do tórrido calor de um Verão à séria.
Estava eu no secundário e a mais excitante novidade na Lisboa de então, eram os termómetros digitais em dois ou três pontos da cidade. Como um dos ditos ficava a poucos quarteirões do colégio, a chegada do Verão era efectivamente comprovada por várias visitas diárias ao mesmo para aferir das qualidades do Verão que chegava, medidas pela proximidade da mágica marca dos 40º. E nos Verões de então, tal acontecia mesmo. Chegámos a festejar uns fantásticos 42º medidos ali mesmo à nossa beira, no termómetro gigantesco pendurado na linha do comboio por cima da Av. Da República. Era um verão à séria!
Com a chegada do Verão, era altura de trocar os amigos do colégio pelos primos e os amigos destes. Era uma troca curiosa esta. Saía do Campo Pequeno e rumava para o “ameno” Alentejo, de onde, invariavelmente, regressava três meses depois (interrompidos apenas por uma quinzena no Algarve) com um sotaque à Verão, ou Alentejano, para os mais puristas.
Eram tempos de verdadeiro aproveitamento da estação. A actividade mais habitual consistia em pedalar pelos campos, com o farnel preparado pela minha tia no “suporte” da bicicleta, sob um inclemente sol Alentejano, procurando cada dia uma nova barragem onde nadar e pescar, ou um jacto de rega nos campos de girassóis, que nos regasse também enquanto descansávamos deitados no chão. Se efectivamente a pesca fosse mais que uma mera diversão e conseguíssemos enganar algum Achigã, Carpa ou Barbo, então nessa noite havia fogueira e peixe grelhado.
Eram meses de novas experiências, porque todos os anos havia actividade novas. Um ano, o meu tio tinha comprado um rebanho de ovelhas e ao meu primo e a mim, cabia a “dura” tarefa de as levar ao campo de pasto ao anoitecer; claro que geralmente fazíamos corridas montados nas ovelhas, até cair ao chão, ou até o macho do rebanho se fartar e nos atirar ele próprio. Outro ano, havia a enfardadeira novinha do tio e não descansámos enquanto não fomos com ele, passar dias inteiros empoleirados nos gigantescos guarda-lamas do tractor, a ver aquela máquina que engolia filas intermináveis de cereal ceifado, espantando à sua frente assustados coelhos. Eram dias de uma diversão que não se explica, pela emoção dos campos de restolho a perder de vista, os mergulhos nas barragens, os almoços de atum em lata comidos debaixo de um chaparro, antes da muito Alentejana sesta. Tudo acompanhado de quilos de poeira e palha, entranhados na roupa, na pele e no cabelo. Cheirava a palha, a Alentejo e a Verão.
As noites, essas jamais as esquecerei; ficávamos sempre no terraço da casa, deitados sobre um colchão, com um cobertor aos pés na eventualidade de uma madrugada mais fresca e adormecia sempre a olhar as estrelas.
Este é o Verão que era. O contraponto às amenas estações intermédias e ao austero e civilizado Inverno, passado na cidade. Uma peça importante daquilo que sou hoje.
O Verão que é, já não é o Verão que era. No Verão de hoje, reduziram as férias a duas ou três semanas. A esta distância, 40º parecem irreais e só se formos a alguma cidade do Norte de África ou do Médio Oriente.
No Verão de hoje, as noites são frescas e quando saímos à rua, não sabemos se antes do fim do dia ainda vai chover. As pessoas continuam a trabalhar, não se dando conta de que é Verão. O stress é quase o mesmo do resto do ano e apenas o mês de Agosto, ainda que passado em Lisboa, se aproxima dos tempos de outrora, pelo reduzido número de pessoas que por aqui andam.
No Verão de hoje, o meu primo já não está connosco e aos seus amigos, já nem os conheço. As ovelhas foram vendidas e a enfardadeira ganha ferrugem debaixo de um sobreiro. É quase como se o Verão estivesse fechado, à espera que alguém lhe pegue e o restitua ao esplendor de outros tempos. Ou se calhar, o Verão que é ainda é o mesmo; nós é que não.
Estava eu no secundário e a mais excitante novidade na Lisboa de então, eram os termómetros digitais em dois ou três pontos da cidade. Como um dos ditos ficava a poucos quarteirões do colégio, a chegada do Verão era efectivamente comprovada por várias visitas diárias ao mesmo para aferir das qualidades do Verão que chegava, medidas pela proximidade da mágica marca dos 40º. E nos Verões de então, tal acontecia mesmo. Chegámos a festejar uns fantásticos 42º medidos ali mesmo à nossa beira, no termómetro gigantesco pendurado na linha do comboio por cima da Av. Da República. Era um verão à séria!
Com a chegada do Verão, era altura de trocar os amigos do colégio pelos primos e os amigos destes. Era uma troca curiosa esta. Saía do Campo Pequeno e rumava para o “ameno” Alentejo, de onde, invariavelmente, regressava três meses depois (interrompidos apenas por uma quinzena no Algarve) com um sotaque à Verão, ou Alentejano, para os mais puristas.
Eram tempos de verdadeiro aproveitamento da estação. A actividade mais habitual consistia em pedalar pelos campos, com o farnel preparado pela minha tia no “suporte” da bicicleta, sob um inclemente sol Alentejano, procurando cada dia uma nova barragem onde nadar e pescar, ou um jacto de rega nos campos de girassóis, que nos regasse também enquanto descansávamos deitados no chão. Se efectivamente a pesca fosse mais que uma mera diversão e conseguíssemos enganar algum Achigã, Carpa ou Barbo, então nessa noite havia fogueira e peixe grelhado.
Eram meses de novas experiências, porque todos os anos havia actividade novas. Um ano, o meu tio tinha comprado um rebanho de ovelhas e ao meu primo e a mim, cabia a “dura” tarefa de as levar ao campo de pasto ao anoitecer; claro que geralmente fazíamos corridas montados nas ovelhas, até cair ao chão, ou até o macho do rebanho se fartar e nos atirar ele próprio. Outro ano, havia a enfardadeira novinha do tio e não descansámos enquanto não fomos com ele, passar dias inteiros empoleirados nos gigantescos guarda-lamas do tractor, a ver aquela máquina que engolia filas intermináveis de cereal ceifado, espantando à sua frente assustados coelhos. Eram dias de uma diversão que não se explica, pela emoção dos campos de restolho a perder de vista, os mergulhos nas barragens, os almoços de atum em lata comidos debaixo de um chaparro, antes da muito Alentejana sesta. Tudo acompanhado de quilos de poeira e palha, entranhados na roupa, na pele e no cabelo. Cheirava a palha, a Alentejo e a Verão.
As noites, essas jamais as esquecerei; ficávamos sempre no terraço da casa, deitados sobre um colchão, com um cobertor aos pés na eventualidade de uma madrugada mais fresca e adormecia sempre a olhar as estrelas.
Este é o Verão que era. O contraponto às amenas estações intermédias e ao austero e civilizado Inverno, passado na cidade. Uma peça importante daquilo que sou hoje.
O Verão que é, já não é o Verão que era. No Verão de hoje, reduziram as férias a duas ou três semanas. A esta distância, 40º parecem irreais e só se formos a alguma cidade do Norte de África ou do Médio Oriente.
No Verão de hoje, as noites são frescas e quando saímos à rua, não sabemos se antes do fim do dia ainda vai chover. As pessoas continuam a trabalhar, não se dando conta de que é Verão. O stress é quase o mesmo do resto do ano e apenas o mês de Agosto, ainda que passado em Lisboa, se aproxima dos tempos de outrora, pelo reduzido número de pessoas que por aqui andam.
No Verão de hoje, o meu primo já não está connosco e aos seus amigos, já nem os conheço. As ovelhas foram vendidas e a enfardadeira ganha ferrugem debaixo de um sobreiro. É quase como se o Verão estivesse fechado, à espera que alguém lhe pegue e o restitua ao esplendor de outros tempos. Ou se calhar, o Verão que é ainda é o mesmo; nós é que não.
Thursday, September 07, 2006
Odeio que gostes de mim e gosto de te odiar
- Olha, gostas de mim?
- Não, odeio-te!
- Mas muito?
- Muito não, mas assim um bocadinho.
- Oh... odeia-me mais.
- Não! Nem penses, já tens sorte em te odiar pouco, não queiras abusar.
- Oh pah... mas achas que com o tempo tenho hipóteses.
- Não sei! Não sei o futuro. Hoje odeio-te pouco, talvez amanhã te odeie mais, mas não sejas chata.
- Vá lá.
- Não sejas chata!
- Oh pah!
- Bem.... já começo a odiar-te mais.
- A sério? YEAH! Toma um beijo... XUAC!!
- Bem, assim estragaste tudo, quase que estou a gostar de ti.
- Oh, foda-se! Não quero. Odeia-me, já!
- Eu até queria, gosto de te odiar, mas que queres. Nem sempre é fácil odiar alguém.
- Tenta, de certeza que tenho coisas más que podes odiar.
- Imagino que sim, mas isso não chega... só te odeio um bocadinho, lamento.
- Bolas, pah, ninguém me odeia como mereço!
- Não, odeio-te!
- Mas muito?
- Muito não, mas assim um bocadinho.
- Oh... odeia-me mais.
- Não! Nem penses, já tens sorte em te odiar pouco, não queiras abusar.
- Oh pah... mas achas que com o tempo tenho hipóteses.
- Não sei! Não sei o futuro. Hoje odeio-te pouco, talvez amanhã te odeie mais, mas não sejas chata.
- Vá lá.
- Não sejas chata!
- Oh pah!
- Bem.... já começo a odiar-te mais.
- A sério? YEAH! Toma um beijo... XUAC!!
- Bem, assim estragaste tudo, quase que estou a gostar de ti.
- Oh, foda-se! Não quero. Odeia-me, já!
- Eu até queria, gosto de te odiar, mas que queres. Nem sempre é fácil odiar alguém.
- Tenta, de certeza que tenho coisas más que podes odiar.
- Imagino que sim, mas isso não chega... só te odeio um bocadinho, lamento.
- Bolas, pah, ninguém me odeia como mereço!
Wednesday, September 06, 2006
O dia do Juízo (Parte II)
Continuava a ouvir o som das sirenes dos carros da polícia. Ouvia gritos e viu chegar diversos agentes, que apontavam armas a um corpo estendido no chão com uma Glock 18C na mão... demorou breves instantes a perceber que o corpo sem vida que via, era o seu.
Sentia-se flutuar sobre os acontecimentos, as imagens pareciam correr em câmara lenta e o som chegava até ele abafado.
Enquanto o número de pessoas no escritório ia aumentando e o som das sirenes lá fora se multiplicava, sentiu-se elevar e afastar lentamente daquele cenário de caos.
Sentia-se a flutuar num líquido morno, quase um regresso ao útero... sentia paz e felicidade. Olhou para cima; na direcção em que se dirigia, ao fundo, uma luz levemente arroxeada e difusa distinguia-se do branco em que estava rodeado.
Uma poderosa voz masculina despertou-o deste breve torpor. Alguém chamava o seu nome e o som vinha da luz arroxeada.
Finalmente chegou até lá. À entrada, uma senhora de aspecto elegante, completamente vestida de branco recebeu-o. Quase poderia ser uma normal recepcionista, não fora flutuar a escassos centímetros do chão e emanar um difusa luz verde.
- M.? - Perguntou.
- Sim, sim, sou eu.
- Acompanhe-me, por favor.
Indicou a M. uma cadeira naquilo que era indubitavelmente uma vulgar sala de espera de consultório; sem janelas, sem música e com algumas revistas bastante antigas sobre uma mesa.
Breves instantes depois, a porta do único gabinete visível abriu-se sozinha e alguém chamou o seu nome.
M. ergueu-se e a medo percorreu a curta distância até à porta. Neste momento os seus últimos actos em vida começavam a pesar-lhe como um bloco de granito sobre os ombros.... ia pagar pelos seus actos.
Deteve-se à porta, não parecia haver ninguém lá dentro. Uma voz no entanto repetiu a ordem de entrar e se sentar.
Sentou-se na única cadeira vazia, frente a uma enorme secretária. Do outro lado da secretária, um cadeirão de pele de proporções bíblicas, voltado de costas para M. e de frente para uma janela gigantesca, de onde se podia observar o arquipélago das Maldivas.
O enorme cadeirão voltou-se finalmente. Um idoso de feições orientais, vestido num fato prateado, com longos cabelos brancos, olhava-o enquanto cofiava as barbas grisalhas e em aparente desordem. Por fim quebrou o silêncio:
- Sabe porque está aqui?
- Sim, suponho que sim.
- E é por...?
- Bem, parece que morri e... receio não me ter portado muito bem. Vou para o inferno? Que me vai acontecer?
- Tudo a seu tempo. Porque fez aquilo, M.?
- Nem sei bem... acho que cheguei ao limite. Não aguentava mais as mesmas caras hipócritas, o mesmo dia repetido até à exaustão... perdi o controle.
- Acontece com frequência, sabe M. – perguntou a estranha figura, sem mexer os lábios e sem deixar de cofiar as barbas.
- Sim? Então é mais ou menos normal? Não há problema, portanto?
- Eh, calma. Não nos precipitemos. Diria antes que tem atenuantes. Aqueles seus colegas eram de facto um bocado manhosos, então o seu chefe. Eu não sei se teria aguentado tanto tempo.
- Hã?!!
- Pois... mas há uma coisa que me intriga mesmo.
- O quê?
- Como conseguiu, M. Como foi que conseguiu?
- Bem... nem sei bem... acordei e pensei que não era capaz de aguentar mais...
- Não, não é isso – atalhou o ancião – o que quero saber é como conseguiu uma Glock 18C. Eu ando há meses a procurar uma e nem no mercado negro, aquilo é mesmo difícil de arranjar.
- .... pois.....
Sentia-se flutuar sobre os acontecimentos, as imagens pareciam correr em câmara lenta e o som chegava até ele abafado.
Enquanto o número de pessoas no escritório ia aumentando e o som das sirenes lá fora se multiplicava, sentiu-se elevar e afastar lentamente daquele cenário de caos.
Sentia-se a flutuar num líquido morno, quase um regresso ao útero... sentia paz e felicidade. Olhou para cima; na direcção em que se dirigia, ao fundo, uma luz levemente arroxeada e difusa distinguia-se do branco em que estava rodeado.
Uma poderosa voz masculina despertou-o deste breve torpor. Alguém chamava o seu nome e o som vinha da luz arroxeada.
Finalmente chegou até lá. À entrada, uma senhora de aspecto elegante, completamente vestida de branco recebeu-o. Quase poderia ser uma normal recepcionista, não fora flutuar a escassos centímetros do chão e emanar um difusa luz verde.
- M.? - Perguntou.
- Sim, sim, sou eu.
- Acompanhe-me, por favor.
Indicou a M. uma cadeira naquilo que era indubitavelmente uma vulgar sala de espera de consultório; sem janelas, sem música e com algumas revistas bastante antigas sobre uma mesa.
Breves instantes depois, a porta do único gabinete visível abriu-se sozinha e alguém chamou o seu nome.
M. ergueu-se e a medo percorreu a curta distância até à porta. Neste momento os seus últimos actos em vida começavam a pesar-lhe como um bloco de granito sobre os ombros.... ia pagar pelos seus actos.
Deteve-se à porta, não parecia haver ninguém lá dentro. Uma voz no entanto repetiu a ordem de entrar e se sentar.
Sentou-se na única cadeira vazia, frente a uma enorme secretária. Do outro lado da secretária, um cadeirão de pele de proporções bíblicas, voltado de costas para M. e de frente para uma janela gigantesca, de onde se podia observar o arquipélago das Maldivas.
O enorme cadeirão voltou-se finalmente. Um idoso de feições orientais, vestido num fato prateado, com longos cabelos brancos, olhava-o enquanto cofiava as barbas grisalhas e em aparente desordem. Por fim quebrou o silêncio:
- Sabe porque está aqui?
- Sim, suponho que sim.
- E é por...?
- Bem, parece que morri e... receio não me ter portado muito bem. Vou para o inferno? Que me vai acontecer?
- Tudo a seu tempo. Porque fez aquilo, M.?
- Nem sei bem... acho que cheguei ao limite. Não aguentava mais as mesmas caras hipócritas, o mesmo dia repetido até à exaustão... perdi o controle.
- Acontece com frequência, sabe M. – perguntou a estranha figura, sem mexer os lábios e sem deixar de cofiar as barbas.
- Sim? Então é mais ou menos normal? Não há problema, portanto?
- Eh, calma. Não nos precipitemos. Diria antes que tem atenuantes. Aqueles seus colegas eram de facto um bocado manhosos, então o seu chefe. Eu não sei se teria aguentado tanto tempo.
- Hã?!!
- Pois... mas há uma coisa que me intriga mesmo.
- O quê?
- Como conseguiu, M. Como foi que conseguiu?
- Bem... nem sei bem... acordei e pensei que não era capaz de aguentar mais...
- Não, não é isso – atalhou o ancião – o que quero saber é como conseguiu uma Glock 18C. Eu ando há meses a procurar uma e nem no mercado negro, aquilo é mesmo difícil de arranjar.
- .... pois.....
Tuesday, September 05, 2006
O dia do Juízo (Parte I)
M. entrou na garagem e estacionou cuidadosamente. Apagou as luzes, desligou o carro e saiu. Já fora do carro, ajeitou a gravata vendo o seu reflexo no vidro da porta e dirigiu-se para os elevadores. Olhou para trás para se certificar que tinha deixado as luzes apagadas e acabou mesmo por voltar ao carro para confirmar que tinha trancado as portas. Estavam trancadas e dirigiu-se de novo para o elevador.
Esperou poucos segundos e entrou. Subiam já mais duas pessoas que M. cumprimentou sem expressão. Ajeitou o cabelo na parede espelhada do elevador e saiu no seu andar como fazia há 4 anos. Entrou na recepção e a recepcionista cumprimentou-o com um caloroso bom dia.
Abriu a gabardina e pegou na caçadeira Browning de canos serrados. Ainda antes de o grito que se formava na garganta da recepcionista sair, o tiro atingiu-a em cheio no rosto, arrancando o seu crânio que ficou espalhado numa mancha disforme no grande painel roxo com o logotipo da empresa. Nesse momento alguém saiu a correr de um gabinete mas um disparo certeiro no peito fê-lo voar através dos vidros do gabinete.
Começaram então a ouvir-se gritos, o que o incomodou um pouco. Deu alguns passos em direcção ao corredor que dava acesso ao interior do escritório. Deteve-se junto à segunda porta onde ouviu choros, entrou e a directora de recursos humanos chorava e implorava a M. que não a matasse, que tinha filhos. Ele encostou a arma à sua cabeça e espremeu o gatilho, deixando a alcatifa ensopada com uma massa branca e vermelha. Não conseguiu deixar de sentir repulsa e exclamou alto
– Este escritório está um nojo!
Seguiu de novo pelo corredor, encurralando sem saída todos os que àquela hora já estavam a trabalhar. Aproximou-se da zona de Open Space à esquerda do corredor. Duas colegas choravam sob o abrigo aparente de uma secretária. M. aproximou-se e disparou os últimos dois tiros. Uma delas continuava a chorar, mas agora gritava também, num volume que lhe fez doer a cabeça. Agastado, abriu a Browning e lentamente introduziu cinco novos cartuchos na câmara. Antes de terminar, um colega saiu de trás de um armário e correu passando por ele. Sem sequer pousar a Browning, M. levou a mão à gabardina e tirou a Glock 18C automática, virou-se. Dois estampidos secos e quase simultâneos abriram dois orifícios nas costas do colega, que foi projectado para a frente e embateu na parede. Dos dois orifícios saiam agora golfadas de sangue. Ele tentou levantar-se e arrastar-se, mas mais três estampidos deixaram-no de novo imóvel.
Enfiou a Glock nas calças e agarrou de novo na Browning de canos serrados. Aproximou-se da mesa onde a colega gritava, baixou-se e olhou-a no rosto. Pondo o dedo sobre os lábios fez-lhe – Shhhhh! Ela olhou para ele e pediu,
- Pára M., não faças isto.
O brutal estrondo do chumbo a sair dos canos, perfurar o metal da secretária e alojar-se no corpo dela foi apenas o início de mais uma série de tiros, todos eles certeiros.
Por fim, olhando à sua volta, M. viu o rasto de destruição que deixara, os corpos, o sangue... escutou os gritos e ouviu sirenes a aproximarem-se. Sentiu náuseas de tudo aquilo. Pegou na Glock, encostou a boca do cano à têmpora direita e premiu o gatilho.
Esperou poucos segundos e entrou. Subiam já mais duas pessoas que M. cumprimentou sem expressão. Ajeitou o cabelo na parede espelhada do elevador e saiu no seu andar como fazia há 4 anos. Entrou na recepção e a recepcionista cumprimentou-o com um caloroso bom dia.
Abriu a gabardina e pegou na caçadeira Browning de canos serrados. Ainda antes de o grito que se formava na garganta da recepcionista sair, o tiro atingiu-a em cheio no rosto, arrancando o seu crânio que ficou espalhado numa mancha disforme no grande painel roxo com o logotipo da empresa. Nesse momento alguém saiu a correr de um gabinete mas um disparo certeiro no peito fê-lo voar através dos vidros do gabinete.
Começaram então a ouvir-se gritos, o que o incomodou um pouco. Deu alguns passos em direcção ao corredor que dava acesso ao interior do escritório. Deteve-se junto à segunda porta onde ouviu choros, entrou e a directora de recursos humanos chorava e implorava a M. que não a matasse, que tinha filhos. Ele encostou a arma à sua cabeça e espremeu o gatilho, deixando a alcatifa ensopada com uma massa branca e vermelha. Não conseguiu deixar de sentir repulsa e exclamou alto
– Este escritório está um nojo!
Seguiu de novo pelo corredor, encurralando sem saída todos os que àquela hora já estavam a trabalhar. Aproximou-se da zona de Open Space à esquerda do corredor. Duas colegas choravam sob o abrigo aparente de uma secretária. M. aproximou-se e disparou os últimos dois tiros. Uma delas continuava a chorar, mas agora gritava também, num volume que lhe fez doer a cabeça. Agastado, abriu a Browning e lentamente introduziu cinco novos cartuchos na câmara. Antes de terminar, um colega saiu de trás de um armário e correu passando por ele. Sem sequer pousar a Browning, M. levou a mão à gabardina e tirou a Glock 18C automática, virou-se. Dois estampidos secos e quase simultâneos abriram dois orifícios nas costas do colega, que foi projectado para a frente e embateu na parede. Dos dois orifícios saiam agora golfadas de sangue. Ele tentou levantar-se e arrastar-se, mas mais três estampidos deixaram-no de novo imóvel.
Enfiou a Glock nas calças e agarrou de novo na Browning de canos serrados. Aproximou-se da mesa onde a colega gritava, baixou-se e olhou-a no rosto. Pondo o dedo sobre os lábios fez-lhe – Shhhhh! Ela olhou para ele e pediu,
- Pára M., não faças isto.
O brutal estrondo do chumbo a sair dos canos, perfurar o metal da secretária e alojar-se no corpo dela foi apenas o início de mais uma série de tiros, todos eles certeiros.
Por fim, olhando à sua volta, M. viu o rasto de destruição que deixara, os corpos, o sangue... escutou os gritos e ouviu sirenes a aproximarem-se. Sentiu náuseas de tudo aquilo. Pegou na Glock, encostou a boca do cano à têmpora direita e premiu o gatilho.
Monday, September 04, 2006
Mundo Colorido
Há muito, muito tempo, havia um reino cor-de-rosa, governado por uma princesa cor-de-rosa. Neste reino cor-de-rosa, todas as coisas eram cor-de-rosa; as casas, a relva, as árvores, as roupas... e até o céu era de um belo azul rosado.
Na verdade, a única coisa que não era cor-de-rosa, era a vida da princesa da nossa história.
Do alto do seu castelo rosa, ela costumava olhar os campos rosa e ver os pássaros rosados a voar pelo céu cor-de-rosa, mas, apesar da beleza do cenário, já nada disso lhe enchia o peito do calor rosa que ela precisava. Sentia-se por vezes pintada de rosa escuro, quase lilás e percebia no seu íntimo que lhe faltava alguma coisa.
Certo dia, enquanto cavalgava no seu cavalo rosa por um campo rosa, viu ao longe algo que lhe chamou a atenção. A princípio nem se apercebeu exactamente daquilo que captava o seu olhar, mas depressa se apercebeu do que a atraíra: um cavalo azul estava a beber água nas margens do lago rosa. Aproximou-se surpreendida e viu um príncipe azul a dormir na relva rosa junto ao lago rosa.
Ficou parada por uns instantes, boca aberta pelo espanto. A princesa rosa nunca tinha visto pessoas de outras cores. O cavalo rosa também não e aproximou-se curioso do cavalo azul. Quando ambos os cavalos se cumprimentaram com um relinchar colorido, o principe azul acordou e pôs-se de pé de um salto. Ao fazê-lo, encarou a princesa rosa, debruçada sobre ele; esta ficou muito corada com o rosto ainda mais rosa. Mas não conseguia desviar o olhar dos olhos azuis do príncipe azul, que brilhavam como uma estrela nova.
Ele foi o primeiro a falar.
- Olá, sou o príncipe azul, do reino azul, um reino a várias semanas a cavalo daqui.
- Olá – disse ela com o rosto bastante rosado – eu sou a princesa rosa. Estou muito surpreendida, nem sabia que havia reinos de outras cores.
- Oh sim, há imensos reinos coloridos!
- Que te trouxe até ao meu reino rosa?
- Sabes, estava farto do meu mundo azul e decidi montar o Alazul e partir em busca de novas cores, que me completassem por dentro.
Enquanto ele falava, a princesa rosa não conseguia desviar os seus olhos rosa do intenso brilho azul dos olhos do príncipe. A existência de outras cores era algo não só novo, mas completamente belo. A princesa rosa estava fascinada.
E nem o principe consegui desviar os seus olhos azuis da rosada beleza da princesa rosa. Ela era bela como nenhuma outra mulher que ele conhecera.
Durante os dias seguintes, o príncipe e o seu cavalo azul foram os dois o alvo da curiosidade de todos os rosados habitantes do reino rosa. Eles acompanharam a princesa rosa por todo o reino e a cada dia gostavam mais da estada neste mundo rosa.
Não foi por isso uma surpresa o dia em que a princesa rosa anúnciou na imprensa cor-de-rosa que ia viver junta com o principe azul. Sem casamentos, sem festas rosa para pessoas rosa, apenas um dia feriado, onde os amigos azuis do príncipe azul puderam conhecer a princesa rosa e os simpáticos habitantes do seu reino.
Desde esse dia, o azul e o rosa passaram a ser cores inseparáveis.
Na verdade, a única coisa que não era cor-de-rosa, era a vida da princesa da nossa história.
Do alto do seu castelo rosa, ela costumava olhar os campos rosa e ver os pássaros rosados a voar pelo céu cor-de-rosa, mas, apesar da beleza do cenário, já nada disso lhe enchia o peito do calor rosa que ela precisava. Sentia-se por vezes pintada de rosa escuro, quase lilás e percebia no seu íntimo que lhe faltava alguma coisa.
Certo dia, enquanto cavalgava no seu cavalo rosa por um campo rosa, viu ao longe algo que lhe chamou a atenção. A princípio nem se apercebeu exactamente daquilo que captava o seu olhar, mas depressa se apercebeu do que a atraíra: um cavalo azul estava a beber água nas margens do lago rosa. Aproximou-se surpreendida e viu um príncipe azul a dormir na relva rosa junto ao lago rosa.
Ficou parada por uns instantes, boca aberta pelo espanto. A princesa rosa nunca tinha visto pessoas de outras cores. O cavalo rosa também não e aproximou-se curioso do cavalo azul. Quando ambos os cavalos se cumprimentaram com um relinchar colorido, o principe azul acordou e pôs-se de pé de um salto. Ao fazê-lo, encarou a princesa rosa, debruçada sobre ele; esta ficou muito corada com o rosto ainda mais rosa. Mas não conseguia desviar o olhar dos olhos azuis do príncipe azul, que brilhavam como uma estrela nova.
Ele foi o primeiro a falar.
- Olá, sou o príncipe azul, do reino azul, um reino a várias semanas a cavalo daqui.
- Olá – disse ela com o rosto bastante rosado – eu sou a princesa rosa. Estou muito surpreendida, nem sabia que havia reinos de outras cores.
- Oh sim, há imensos reinos coloridos!
- Que te trouxe até ao meu reino rosa?
- Sabes, estava farto do meu mundo azul e decidi montar o Alazul e partir em busca de novas cores, que me completassem por dentro.
Enquanto ele falava, a princesa rosa não conseguia desviar os seus olhos rosa do intenso brilho azul dos olhos do príncipe. A existência de outras cores era algo não só novo, mas completamente belo. A princesa rosa estava fascinada.
E nem o principe consegui desviar os seus olhos azuis da rosada beleza da princesa rosa. Ela era bela como nenhuma outra mulher que ele conhecera.
Durante os dias seguintes, o príncipe e o seu cavalo azul foram os dois o alvo da curiosidade de todos os rosados habitantes do reino rosa. Eles acompanharam a princesa rosa por todo o reino e a cada dia gostavam mais da estada neste mundo rosa.
Não foi por isso uma surpresa o dia em que a princesa rosa anúnciou na imprensa cor-de-rosa que ia viver junta com o principe azul. Sem casamentos, sem festas rosa para pessoas rosa, apenas um dia feriado, onde os amigos azuis do príncipe azul puderam conhecer a princesa rosa e os simpáticos habitantes do seu reino.
Desde esse dia, o azul e o rosa passaram a ser cores inseparáveis.
Saturday, September 02, 2006
(sem título)
Sei que to digo todos os dias
Que to relembro a todas as horas
Quando te toco, quando te olho, quando te cheiro
(Have I told you lately that I love you?)*
Sei que o tenho escrito nos olhos
E que o sentes quando te falo ao ouvido
(Have I told you there's no one else above you?)*
Mas quando o teu olhar devolve o meu
E os teus lábios me tocam a pele
Quando fecho os olhos e sinto o teu calor
(Fill my heart with gladness)*
Sei que sentes o mesmo
Sei que faço parte de ti,
Como tu fazes de mim
(take away all my sadness
ease my troubles that's what you do)*
* ROD STEWART lyrics - "Have I Told You Lately"
Que to relembro a todas as horas
Quando te toco, quando te olho, quando te cheiro
(Have I told you lately that I love you?)*
Sei que o tenho escrito nos olhos
E que o sentes quando te falo ao ouvido
(Have I told you there's no one else above you?)*
Mas quando o teu olhar devolve o meu
E os teus lábios me tocam a pele
Quando fecho os olhos e sinto o teu calor
(Fill my heart with gladness)*
Sei que sentes o mesmo
Sei que faço parte de ti,
Como tu fazes de mim
(take away all my sadness
ease my troubles that's what you do)*
* ROD STEWART lyrics - "Have I Told You Lately"
Friday, September 01, 2006
Praia da Luz
Sentado na esplanada da Praia da Luz, deixava o sol acariciar-lhe o corpo naqueles últimos e tépidos raios de sol de um fim de tarde de sexta feira. Recostado na cadeira, o copo de James Martin numa mão e o Cohiba Supremo na outra, experimentou a deliciosa sensação de fechar os olhos e deixar o som das ondas frias do Atlântico a rebentar na rocha, descansar-lhe os pensamentos. Embalado pelo som do mar e estimulado pelo contraste entre o frio vento de Novembro e as quentes carícias do sol, ele sentia-se verdadeiramente em paz.
Foi arrancado deste torpor pelo vibrar do telemóvel no bolso das calças. Era ela, estava ainda na Praça da Galiza e ia chegar um pouco atrasada. Ergueu-se um pouco na cadeira e puxou lentamente e com força, outra baforada do Cohiba. Recostou-se, pousou o charuto e o copo e voltou a fechar os olhos. Alguns minutos depois dormia.
Foi acordado com uns lábios a repousar sobre os seus. Abriu os olhos
- Ana?!
- ...risos... Olá tronxo! Desculpa o atraso.
- Não faz mal, eu adormeci.
- Nota-se! Já pagaste? Se sim vamos subindo, eles no Cafeína não gostam de atrasos nas reservas.
- Ok, vamos já.
Vestiu a camisola, pois a noite instalara-se e o frio vento estava verdadeiramente desagradável. Deram a mão e subiram a rampa. Caminharam uns metros em silêncio, um silêncio cúmplice. Chegaram ao restaurante e foram encaminhados para a mesa do costume.
- Como foi o teu dia?
- Cansativo – disse ela - a viagem e mais o stress de toda a situação. Não foi fácil.
- Compreendo. Gostava de te ajudar, mas não sei que posso fazer. Queres que vá lá contigo quando tiveres que voltar?
- Oh, obrigado, mas não. É daquelas coisas q tenho q ser eu a fazer.
- Sim, eu sei... eu faria o mesmo.
- E tu?
- Não foi muito melhor; aquilo por lá está insuportável.
- Continua?
- Sim, sem quaisquer alterações.
Foram interrompidos pelo empregado, que lhes deixou a lista e recomendou o Folhado de Lagosta. Este pequeno momento desviou-lhes a atenção das preocupações- ele segurou a mão dela e apertou-a.
- Gosto de ti, sabes?
- Acho que sim.
- Tronxa!
- Não, tu sabes que isto é complicado, a minha resposta é sentida.
- Claro que não é fácil, para nenhum dos dois. Mas isso não altera o que sinto.
- Olha, agora que falas em cinto, a Haity já está com promoções.
- Ena e agora que falas em promoções, em Janeiro vou ser nomeado director, sabias?
- Xiii, mas olha uma coisa, conheces o gajo que esreveu este texto?
- Epah... acho que não, mas também a ver pela qualidade disto, acho que não quero. É que se não fôssemos actores experientes este filme estava uma merda.
- Podes crer!
Foi arrancado deste torpor pelo vibrar do telemóvel no bolso das calças. Era ela, estava ainda na Praça da Galiza e ia chegar um pouco atrasada. Ergueu-se um pouco na cadeira e puxou lentamente e com força, outra baforada do Cohiba. Recostou-se, pousou o charuto e o copo e voltou a fechar os olhos. Alguns minutos depois dormia.
Foi acordado com uns lábios a repousar sobre os seus. Abriu os olhos
- Ana?!
- ...risos... Olá tronxo! Desculpa o atraso.
- Não faz mal, eu adormeci.
- Nota-se! Já pagaste? Se sim vamos subindo, eles no Cafeína não gostam de atrasos nas reservas.
- Ok, vamos já.
Vestiu a camisola, pois a noite instalara-se e o frio vento estava verdadeiramente desagradável. Deram a mão e subiram a rampa. Caminharam uns metros em silêncio, um silêncio cúmplice. Chegaram ao restaurante e foram encaminhados para a mesa do costume.
- Como foi o teu dia?
- Cansativo – disse ela - a viagem e mais o stress de toda a situação. Não foi fácil.
- Compreendo. Gostava de te ajudar, mas não sei que posso fazer. Queres que vá lá contigo quando tiveres que voltar?
- Oh, obrigado, mas não. É daquelas coisas q tenho q ser eu a fazer.
- Sim, eu sei... eu faria o mesmo.
- E tu?
- Não foi muito melhor; aquilo por lá está insuportável.
- Continua?
- Sim, sem quaisquer alterações.
Foram interrompidos pelo empregado, que lhes deixou a lista e recomendou o Folhado de Lagosta. Este pequeno momento desviou-lhes a atenção das preocupações- ele segurou a mão dela e apertou-a.
- Gosto de ti, sabes?
- Acho que sim.
- Tronxa!
- Não, tu sabes que isto é complicado, a minha resposta é sentida.
- Claro que não é fácil, para nenhum dos dois. Mas isso não altera o que sinto.
- Olha, agora que falas em cinto, a Haity já está com promoções.
- Ena e agora que falas em promoções, em Janeiro vou ser nomeado director, sabias?
- Xiii, mas olha uma coisa, conheces o gajo que esreveu este texto?
- Epah... acho que não, mas também a ver pela qualidade disto, acho que não quero. É que se não fôssemos actores experientes este filme estava uma merda.
- Podes crer!
Thursday, August 31, 2006
My dreams in blurred colors
I remember waking up tonight to find it was all red and yellow. And yet, there you were, dancing, blending with the colors and calling out my name.
I remember you reaching for my hand and asking me to dance. Yes, I remember it and it was all red and yellow. Your red lips and yellow words told me you loved me.
I remember my red voice saying I love you too and your yellow eyes smiled back at me.
I can’t remember if I was sleeping or awake. I just remember you in red and yellow colors, walking into my red and yellow dream, blending with the colors and calling out my name.
Teoria conspirativa em baseada em boatos reais
Na ultima sexta feira, enquanto fazia as minhas primeiras compras num supermercado conhecido, numa zona conservadora da cidade, algo chamou a minha atenção.
Seguia pelo corredor das massas e arroz e procurava decifrar as diferenças entre o arroz carolino, o basmati e o selvagem, quando uma anormal agitação dois corredores abaixo me fez espreitar sobre as embalagens de ‘tortelini’ na tentativa de me inteirar do que se passava.
Um grupo de senhores, já claramente para lá da barreira da meia idade, cochichava junto da prateleira dos esfregões scotch-brite salva-unhas. A princípio pensei que se interrogavam sobre a utilidade daquelas pequenas esponjas, mas acabei por perceber que assim não era.
O que imediatamente me chamou a atenção, foi que todos eles vestiam sobretudos azuis – o chamado sobretudo à Freitas do Amaral - à excepção de um mais alto e calvo, que tinha um sobretudo idêntico mas castanho. Seria claramente o neo-liberal do grupo.
Soltavam risadas largas e sonoras, intercaladas com momentos do que parecia ser um cochicho em que algum deles dizia algo.
Segui sem valorizar em demasia este acontecimento e enquanto tentava fazer slalom por entre carros de compras abandonados no meio dos corredores, por velhinhas com penteados cheios de laca que liam com dificuldade as letrinhas pequenas nas costas de embalagens de cosméticos, fui mesmo esquecendo aquele evento e re-entrei na minha lista mental de compras.
Percorri o corredor dos congelados retirando diversas refeições pré-feitas, com que surpreenderei os meus convidados – se e quando os houver, daí a necessidade de serem congeladas – quando acabei por me deter junto aos iogurtes. Espreitava com genuíno interesse as diversas marcas que ofereciam cremosos açucarados, averiguando preços, condições de rappel e descontos financeiros e finalmente encontrei o que pretendia. Quatro pelo preço de três. Ao retirar da prateleira, de novo as sonoras gargalhadas, mas desta vez ali mesmo nas minhas costas, quase me fizeram derrubar uma pilha de Suissinhos (faltou um bocadinho assim).
Sem me dar conta tinha-me aproximado dos sujeitos dos sobretudos (à Freitas do Amaral) e presenciava agora in loco o mais ruidoso conjunto de gargalhadas combinadas com tosse e catarro da história das Avenidas Novas.
Primeiro tentei deitar-lhes um olhar indignado pelo susto que acabavam de me provocar, mas, como não conseguisse penetrar a barreira formada pelos sobretudos (à Freitas do Amaral), acabei por tentar escutar o que diziam.
- Mas tens a certeza disso? - sussurrava um deles.
- Claro que tenho, pensa lá tu bem – respondeu o mails alto com sobretudo (à freitas do Amaral) castanho – tu já os viste aos dois no mesmo sítio, ao mesmo tempo?
- Eh pah... de facto não.
- Pois claro, estou-te a dizer, o Clooney e o Sócrates são uma e a mesma pessoa. Daí aquela coisa dos debates, ele não pode porque rapou o cabelo para mais uma daquelas séries do CACTUS, ou SAP...
- ER, serviços de urgência?
- Isso, isso!
Não queria acreditar nos meus ouvidos. Por tonto que pudesse parecer, fazia sentido. Agarrei numa embalagem de BioDanone soja com frutos silvestres light sem açúcar, corpos fitness, e fingi ler com interesse a composição, para me aproximar mais e perceber o que diziam, agora que o tom de voz estava mais baixo.
O calvo com sobretudo (à Freitas do Amaral) castanho dizia baixinho
- E sabem aquela coisa do Prof. Marcelo já ficou mesmo esclarecida.
- Ficou?
- Sim, o meu cunhado que trabalha no SIS é que me contou, que aparentemente os americanos do MIB tinham mandado um fax com fotos de diversos extraterrestres inofensivos que teriam vindo para cá, na tentativa de arranjar emprego neste governo, sabem, por causa daquilo de o Santana ser apenas um fantoche da CIA.
- Sim, isso sabia – respondeu um mais baixo e gordo.
- Bom, sucede que o Paes do Amaral, que segundo o meu vizinho de cima, foi do KGB ao tempo da guerra-fria, ameaçou expôr o Marcelo. Ele disse-lhe logo, Marcelo, pensava que tu eras só lunático, afinal és Marciano, cum caraças, vou contar à Moura Guedes, vamos facturar milhões com a publicidade no intervalo das notícias quando expusermos a tua família e mostrarmos fotos da tua infância no planeta vermelho.
- Eiiiiiina méne!!!
Um enorme bruá, mais umas tossidelas e creio que terei perdido mais um pouco da conversa, mas apanhei ainda mais umas frases que não consigo esquecer.
Dizia desta vez o mais novo, magro e de bigode:
- Vocês já sabem esta coisa do Mantorras tanto tempo afastado do público, não sabem?
- Eh pah, de facto é estranho.
- Pois, é que... e isto é segredo, não pode sair daqui, sucede que os americanos, quando o Savimbi morreu, fizeram uma operação secreta, retiraram-lhe o cérebro e mantiveram num aquário, vivo, até decidir o que fazer.
- A sério?
- Sim, claro. Era demasiado importante para desaparecer, mas tinham medo que os russos o apanhassem. Então, quando o Mantorras se lesionou, substituiram-lhe o cérebro pelo do Savimbi e assim ninguém desconfia. Nem os russos, até pq ele anda sempre de vermelho e tudo.
Esta foi a altura em que não aguentei mais revelações e saí a correr (tendo mesmo que voltar mais tarde para recuperar as compras) para ir beber uma água com gás.
Seguia pelo corredor das massas e arroz e procurava decifrar as diferenças entre o arroz carolino, o basmati e o selvagem, quando uma anormal agitação dois corredores abaixo me fez espreitar sobre as embalagens de ‘tortelini’ na tentativa de me inteirar do que se passava.
Um grupo de senhores, já claramente para lá da barreira da meia idade, cochichava junto da prateleira dos esfregões scotch-brite salva-unhas. A princípio pensei que se interrogavam sobre a utilidade daquelas pequenas esponjas, mas acabei por perceber que assim não era.
O que imediatamente me chamou a atenção, foi que todos eles vestiam sobretudos azuis – o chamado sobretudo à Freitas do Amaral - à excepção de um mais alto e calvo, que tinha um sobretudo idêntico mas castanho. Seria claramente o neo-liberal do grupo.
Soltavam risadas largas e sonoras, intercaladas com momentos do que parecia ser um cochicho em que algum deles dizia algo.
Segui sem valorizar em demasia este acontecimento e enquanto tentava fazer slalom por entre carros de compras abandonados no meio dos corredores, por velhinhas com penteados cheios de laca que liam com dificuldade as letrinhas pequenas nas costas de embalagens de cosméticos, fui mesmo esquecendo aquele evento e re-entrei na minha lista mental de compras.
Percorri o corredor dos congelados retirando diversas refeições pré-feitas, com que surpreenderei os meus convidados – se e quando os houver, daí a necessidade de serem congeladas – quando acabei por me deter junto aos iogurtes. Espreitava com genuíno interesse as diversas marcas que ofereciam cremosos açucarados, averiguando preços, condições de rappel e descontos financeiros e finalmente encontrei o que pretendia. Quatro pelo preço de três. Ao retirar da prateleira, de novo as sonoras gargalhadas, mas desta vez ali mesmo nas minhas costas, quase me fizeram derrubar uma pilha de Suissinhos (faltou um bocadinho assim).
Sem me dar conta tinha-me aproximado dos sujeitos dos sobretudos (à Freitas do Amaral) e presenciava agora in loco o mais ruidoso conjunto de gargalhadas combinadas com tosse e catarro da história das Avenidas Novas.
Primeiro tentei deitar-lhes um olhar indignado pelo susto que acabavam de me provocar, mas, como não conseguisse penetrar a barreira formada pelos sobretudos (à Freitas do Amaral), acabei por tentar escutar o que diziam.
- Mas tens a certeza disso? - sussurrava um deles.
- Claro que tenho, pensa lá tu bem – respondeu o mails alto com sobretudo (à freitas do Amaral) castanho – tu já os viste aos dois no mesmo sítio, ao mesmo tempo?
- Eh pah... de facto não.
- Pois claro, estou-te a dizer, o Clooney e o Sócrates são uma e a mesma pessoa. Daí aquela coisa dos debates, ele não pode porque rapou o cabelo para mais uma daquelas séries do CACTUS, ou SAP...
- ER, serviços de urgência?
- Isso, isso!
Não queria acreditar nos meus ouvidos. Por tonto que pudesse parecer, fazia sentido. Agarrei numa embalagem de BioDanone soja com frutos silvestres light sem açúcar, corpos fitness, e fingi ler com interesse a composição, para me aproximar mais e perceber o que diziam, agora que o tom de voz estava mais baixo.
O calvo com sobretudo (à Freitas do Amaral) castanho dizia baixinho
- E sabem aquela coisa do Prof. Marcelo já ficou mesmo esclarecida.
- Ficou?
- Sim, o meu cunhado que trabalha no SIS é que me contou, que aparentemente os americanos do MIB tinham mandado um fax com fotos de diversos extraterrestres inofensivos que teriam vindo para cá, na tentativa de arranjar emprego neste governo, sabem, por causa daquilo de o Santana ser apenas um fantoche da CIA.
- Sim, isso sabia – respondeu um mais baixo e gordo.
- Bom, sucede que o Paes do Amaral, que segundo o meu vizinho de cima, foi do KGB ao tempo da guerra-fria, ameaçou expôr o Marcelo. Ele disse-lhe logo, Marcelo, pensava que tu eras só lunático, afinal és Marciano, cum caraças, vou contar à Moura Guedes, vamos facturar milhões com a publicidade no intervalo das notícias quando expusermos a tua família e mostrarmos fotos da tua infância no planeta vermelho.
- Eiiiiiina méne!!!
Um enorme bruá, mais umas tossidelas e creio que terei perdido mais um pouco da conversa, mas apanhei ainda mais umas frases que não consigo esquecer.
Dizia desta vez o mais novo, magro e de bigode:
- Vocês já sabem esta coisa do Mantorras tanto tempo afastado do público, não sabem?
- Eh pah, de facto é estranho.
- Pois, é que... e isto é segredo, não pode sair daqui, sucede que os americanos, quando o Savimbi morreu, fizeram uma operação secreta, retiraram-lhe o cérebro e mantiveram num aquário, vivo, até decidir o que fazer.
- A sério?
- Sim, claro. Era demasiado importante para desaparecer, mas tinham medo que os russos o apanhassem. Então, quando o Mantorras se lesionou, substituiram-lhe o cérebro pelo do Savimbi e assim ninguém desconfia. Nem os russos, até pq ele anda sempre de vermelho e tudo.
Esta foi a altura em que não aguentei mais revelações e saí a correr (tendo mesmo que voltar mais tarde para recuperar as compras) para ir beber uma água com gás.
Wednesday, August 30, 2006
Old Flanagan Was a Lucky Bastard
O Velho Flanagan – assim era conhecido pelos habitantes de Shiresland- era uma pessoa discreta, que raramente sobressaia do nevoeiro que era a vida social da comunidade.
Descendente dos Flanagan das Highlands, ele vivia no castelo Donamb, junto ao lago com o mesmo nome e dedicava-se essencialmente à criação de gado nos seus campos bem como ao pequeno negócio de Bed & Breakfast que decidira criar usando a ala leste do grande castelo.
Ou pelo menos assim pensavam as pessoas de Shiresland até aquele dia.
Mas voltemos atrás na história. Shiresland era uma pacata comunidade junto das margens do lago Donamb e, como muitas outras localidades da Escócia, reclamava para o seu lago a existência de um monstro pré-histórico de dimensões e apetite grotescos. Esta ideia alimentava dezenas de lendas e relatos, mais ou menos inverosímeis, sobre a presença de tal criatura. E era nessas lendas que se alimentava muito do comércio local, já que eram elas que mantinham o fluxo de turistas.
De todas as formas, a característica mais peculiar de Shiresland era a competição tácita existente entre todos os habitantes, para ver quem conseguia ser o primeiro a apresentar provas irrefutáveis da existência da criatura. Sempre que alguém apresentava o que dizia ser uma nova prova, havia grande comoção no povoado e, pelo menos até ser desmontada a prova, o seu autor era a pessoa socialmente mais in da vila.
As dimensões do fenómeno ultrapassavam muitas vezes o que seria razoável.
Talvez por sempre ser realtivamente alheio a este fenómeno, o velho Flanagan era tão discreto. Apesar da sua morada previlegiada mesmo encostado às magens do lago, raras vezes os habitantes de Shiresland se lembram de o ter visto nas assembleias mensais de discussão das novas provas e muito menos participar nas acaloradas discussões pós-assembleia, no Pub Lake Serpent.
No entanto, na manhã daquele dia de Março, ainda o sol não tinha penetrado a espessa cobertura de Nevoeiro sobre o lago e a vila, quando uma enorme explosão fez estremecer todas as casas de Shiresland. Em poucos minutos, diversos habitantes – muitos ainda em roupa de dormir – se começaram a juntar no largo frente à casa de Duncan McLeoud, o homem mais velho da vila, do qual ninguém sabia a idade. McLeoud era também o homem mais bem informado e tinha lugar cativo no balcão do Lake Serpent.
Naquele dia porém, nem Duncan McLeoud sabia o que se passava.
No momento da segunda explosão, já praticamente toa a vila estava no largo. Desta vez houve logo quem gritasse: Vem do castelo do velho Flanagan, vamos para lá!
E assim foi. Um grupo de homens partiu imediatamente em direccção às margens do lago Donamb, a passo apressado, para averiguar do que se tratava. À chegada, um cenário assustador os esperava; boa parte da ala Leste do castelo estava transformada num monte de escombros fumegantes. Depois, à direita do castelo, onde andes havia um enorme rochedo, havia agora uma grande cratera. Junto a esta, algumas máquinas de aspecto estranho, fazendo lembrar vagamente enormes brocas perfuradoras e outro equipamento de escavação. Do seu interior pareciam vir gritos e rugidos.
Aproximou-se o grupo e o que viu emudeceu todos. Um enorme pescoço de um animal semelhante a uma serpente, erguia-se uns bons 5 metros acima da água no fundo da cratera e agitava-se em gritos de gelar o sangue. Encurralados a um canto, o velho Flanagan e o seu mordomo gritavam e tentavam afugentar a besta a tiros de zagalote.
O velho Flanagan havia descoberto a prova das provas: o monstro ele próprio.
Gelados pelo que viam, os homens da vila assistiram impotentes enquanto a cabeça monstruosa se abateu sobre os dois homens e os levantou no ar, antes de os engolir. Logo a seguir, desapareceu no escuro lago.
Quando, minutos depois conseguiram recuperar a fala, ninguém se esquece das palavras do velho McLeoud:
- That Old Flanagan… what a Lucky Bastard!! He found the beast!
Tuesday, August 29, 2006
Para Sempre
Subimos o último lanço de escadas juntos, a correr. Chegamos lá acima, seguro-lhe a porta e puxo-a os últimos degraus.
Primeiro segura-se a mim, surpreendida com o vento forte, depois debruça-se na parede e grita de espanto:
- É lindo!! Nunca pensei que a vista daqui fosse tão bonita.
- Sim, é completamente insuspeito. É o meu canto secreto. Serve para ver o mundo a correr de um lado para o outro, lá em baixo.
- É tão alto...
- São 18 andares.
- Sabes o que eu gostava?
- Não. O quê?
- Gostava de fazer amor contigo aqui em cima.
Olho-a nos olhos, sorrio primeiro, depois aproximo o meu rosto do seu e beijo-a. Beijamo-nos. Primeiro ao de leve, depois sofregamente, como se nos mordêssemos.
Sem descolar as bocas, ela despe-me a t-shirt e acaricia-me... eu luto com os botões da sua camisa e acabo por os vencer. Beijo o seu peito, o seu pescoço, agarro-a com força, levanto-a e sento-a num dos longos bancos que decoram o terraço. Deito-a, desaperto os botões das suas calças e puxo-as lentamente.
Agarrados, fazemos amor, com o som da cidade em fundo, como um coração que bate marcando o ritmo de um ser que não pára nem abranda... tal como nós, já cobertos de suor, mas ainda não saciados.
Muito tempo depois, ainda lado a lado a olhar o céu, partilhamos a visita da Lua, e a despedida do sol. Observamos nos olhos um do outro os refexos cintilantes e coloridos dos néons da cidade. Afago o seu cabelo, olho-a nos olhos e pergunto:
- Vais ser minha para sempre?
- Vou, enquanto formos um do outro serei tua para sempre.
- E... e depois disso.
-Depois disso seremos para sempre de outras pessoas... não interessa. Interessa apenas o agora. E neste momento sou tua para sempre.
Primeiro segura-se a mim, surpreendida com o vento forte, depois debruça-se na parede e grita de espanto:
- É lindo!! Nunca pensei que a vista daqui fosse tão bonita.
- Sim, é completamente insuspeito. É o meu canto secreto. Serve para ver o mundo a correr de um lado para o outro, lá em baixo.
- É tão alto...
- São 18 andares.
- Sabes o que eu gostava?
- Não. O quê?
- Gostava de fazer amor contigo aqui em cima.
Olho-a nos olhos, sorrio primeiro, depois aproximo o meu rosto do seu e beijo-a. Beijamo-nos. Primeiro ao de leve, depois sofregamente, como se nos mordêssemos.
Sem descolar as bocas, ela despe-me a t-shirt e acaricia-me... eu luto com os botões da sua camisa e acabo por os vencer. Beijo o seu peito, o seu pescoço, agarro-a com força, levanto-a e sento-a num dos longos bancos que decoram o terraço. Deito-a, desaperto os botões das suas calças e puxo-as lentamente.
Agarrados, fazemos amor, com o som da cidade em fundo, como um coração que bate marcando o ritmo de um ser que não pára nem abranda... tal como nós, já cobertos de suor, mas ainda não saciados.
Muito tempo depois, ainda lado a lado a olhar o céu, partilhamos a visita da Lua, e a despedida do sol. Observamos nos olhos um do outro os refexos cintilantes e coloridos dos néons da cidade. Afago o seu cabelo, olho-a nos olhos e pergunto:
- Vais ser minha para sempre?
- Vou, enquanto formos um do outro serei tua para sempre.
- E... e depois disso.
-Depois disso seremos para sempre de outras pessoas... não interessa. Interessa apenas o agora. E neste momento sou tua para sempre.
Monday, August 28, 2006
O Sono
John acordou cedo. Muito mais cedo que o que gostaria. Ergueu-se, protegendo a vista das tiras de luz intensa que entravam pelos intervalos dos estores.
Aquela dor de cabeça era insuportável. Ergueu o tronco, pôs os pés no chão e manteve-se assim, sentado com a cabeça apoiada nas mãos, durante uns segundos. Respirou fundo e levantou-se. Caminhou até à casa de banho e confirmou no espelho que as dores que sentia, se viam por fora. Tinha profundos golpes no rosto e um hematoma feio no queixo.
Lavou a cara com água fria e olhou-se de novo no espelho enquanto fazia um esgar de dor ao tocar num dos cortes. Despiu-se, atirou a roupa para o chão e entrou na banheira.
Cerca de 45 minutos depois estava no carro a caminho daquele encontro. Às 13.25, com apenas 25 minutos de atraso, entrou no restaurante. Viu a Cristina imediatamente, sentada numa mesa na esplanada. Caminhou até ela e sentou-se.
- Desculpa, não consegui acordar a horas.
- Que te aconteceu? Meu Deus, que te aconteceu?
- Não é nada Cristina, a sério.
- Nada?! Estás todo cortado e com hematomas!
- Não foi nada!
- Estás a brincar comigo, não estás, John? ... Foste ao menos ao médico.
- Não vale a pena, isto não é nada.
- Meu Deus e que cara tu tens. Tens dormido?
- Dormi hoje um bocadinho.
- Só hoje?
John desviou o rosto de Cristina e por uns instantes olhou o rio e a vida a correr na cidade. Apenas por uns segundos esteve longe dali. Depois ergueu de novo os olhos e encarou Cristina.
- Que queres que te diga. Não posso dormir.
- Como não podes dormir? Que se passa John? Há quanto tempo não dormes? E o que te aconteceu ao rosto?
- Calma, tantas perguntas, - disse John forçando um sorriso - Podemos pedir primeiro? Não comi nada ainda.
- Ok.
Durante uns minutos ficaram em silêncio, mais envoltos num turbilhão de pensamentos que propriamente a ler a lista. Cristina, intrigada e preocupada com John e ele, pensando se contar ou evitar as perguntas.
Acabaram por pedir o prato do dia. Enquanto o empregado enchia o copo de John, Cristina fixou o seu olhar.
- Então John, vais contar-me o que se passa? Com calma e desde o início?
- Não se passa nada...
- Não John, não comeces com isso – interrompeu Cristina – passa-se qualquer coisa e aparenta ser grave.
- Cristina.... eu... eu não posso dormir. Não sei como te explicar isto.
- Mas não podes dormir como? Tens alguma coisa para fazer? Trabalhas à noite, é isso? E essas mazelas têm a ver com o que fazes, é?
- Não Cristina, não é assim tão simples... Tenho medo de dormir.
- Desculpa?
- Tenho um sonho, ou melhor, um pesadelo, que se repete sempre que fecho os olhos. É impossível escapar-lhe. E... e geralmente acordo magoado do pesadelo.
- Oh John, mas ...
- Espera, não é tudo. Hoje dormi, estava há 5 noites sem dormir e não aguentei. O resultado podes ver no meu rosto.
Cristina fitou os olhos de John por uns momentos, incrédula. Passou-lhe pela cabeça que ele estivesse louco, que não estivesse em si. No entanto, as olheiras, o ar cansado e aquelas marcas no rosto...
- Não estou louco, Cristina, embora vá ficar muito brevemente se não resolver isto.
- Mas, que sonho é esse?
- São os meus monstros todos, Cristina, esperam por mim quando me deito.
Friday, August 25, 2006
Urgências Filosóficas
- Dr Duchamp, Dr Duchamp!! por favor venha já comigo, acabou de entrar um caso grave de Naturalismo.
- Eh lá... isso é melhor ser o Dr Caravaggio a ver, não?
- Não Dr, a sério, ele está ali na enfermaria a pintar um quadro horrível com a bancada dos instrumentos cirurgicos. È mesmo necessária uma intervenção rápida com aplicação de Dadaísmo.
-Pronto, vamos lá ver isso.
Dr Duchamp estava a ter um dia complicado no Banco de Urgências Filosóficas. A sala de espera cheia, o telefone que não parava de tocar e até o chato do Chefe do serviço de Anestesistas, o existencialista Dr Meike Slip, hoje andava particularmente irritante.
- Oh senhora enfermeira, por favor calem-me aquele tipo na maca 6, não se cansa de gritar.... “fora os neo-platónicos, viva os relativistas, fora os neo-platónicos, viva os relativistas”, ...por amor de Deus ou lá de quem mandar nisto, calem o homem!!
- Doutor, estou farta de tentar, mas não há quem o convença a calar-se.
- Oh mulher, ligue lá para cima, para a Unidade de Gregos Clássicos, veja se eles mandam um Sofista, o Dr Gorgia ou outro, pode ser que o convençam a calar-se.
- É para já, doutor.
De facto, as coisas não estavam a correr bem. Desde a eleição do Cardeal Ratzinger como Papa, que as urgências filosóficas não registavam uma enchente desta dimensão. Dr Duchamp dirigiu-se à máquina do café, bebeu um arábica puro e por fim lá foi atender a urgência Naturalística
- Então meu amigo, conte lá como é que foi isto.
- Eu estou bem, a sério que estou.
- Sim, claro, então como justifica este quadro com a maçã do meu almoço, que acabou de pintar?
- er...
- Você sabe o que eu costumo dizer?
- Não...
- Costumo dizer que há que negar todas as tradições sociais e artísticas. Baseio sempre a minha vida num anarquismo niilista e o slogan de Bakunin: "a destruição também é criação" é o meu modo de vida.
- Sim, e então?
- E então estou disposto a partir-lhe a moldura na cabeça a ver se consigo uma bela imagem desconstrutiva.
- Er... sabe, até me estou a sentir melhor, sôtor, sinto de repente um frémito cubista a subir-me pela espinha... melhor, melhor, estou a ver uma pintura a formar-se na minha mente... vejo uma mulher com 3 olhos a fritar um relógio derretido.
- Ora assim é que é falar!! Pode ir-se embora, vou já dar-lhe alta.
- Oh Dr Duchamp, você é brilhante – diz a enfermeira
- Eu sei, querida, eu sei. É do fósforo que como à noite!
- Eh lá... isso é melhor ser o Dr Caravaggio a ver, não?
- Não Dr, a sério, ele está ali na enfermaria a pintar um quadro horrível com a bancada dos instrumentos cirurgicos. È mesmo necessária uma intervenção rápida com aplicação de Dadaísmo.
-Pronto, vamos lá ver isso.
Dr Duchamp estava a ter um dia complicado no Banco de Urgências Filosóficas. A sala de espera cheia, o telefone que não parava de tocar e até o chato do Chefe do serviço de Anestesistas, o existencialista Dr Meike Slip, hoje andava particularmente irritante.
- Oh senhora enfermeira, por favor calem-me aquele tipo na maca 6, não se cansa de gritar.... “fora os neo-platónicos, viva os relativistas, fora os neo-platónicos, viva os relativistas”, ...por amor de Deus ou lá de quem mandar nisto, calem o homem!!
- Doutor, estou farta de tentar, mas não há quem o convença a calar-se.
- Oh mulher, ligue lá para cima, para a Unidade de Gregos Clássicos, veja se eles mandam um Sofista, o Dr Gorgia ou outro, pode ser que o convençam a calar-se.
- É para já, doutor.
De facto, as coisas não estavam a correr bem. Desde a eleição do Cardeal Ratzinger como Papa, que as urgências filosóficas não registavam uma enchente desta dimensão. Dr Duchamp dirigiu-se à máquina do café, bebeu um arábica puro e por fim lá foi atender a urgência Naturalística
- Então meu amigo, conte lá como é que foi isto.
- Eu estou bem, a sério que estou.
- Sim, claro, então como justifica este quadro com a maçã do meu almoço, que acabou de pintar?
- er...
- Você sabe o que eu costumo dizer?
- Não...
- Costumo dizer que há que negar todas as tradições sociais e artísticas. Baseio sempre a minha vida num anarquismo niilista e o slogan de Bakunin: "a destruição também é criação" é o meu modo de vida.
- Sim, e então?
- E então estou disposto a partir-lhe a moldura na cabeça a ver se consigo uma bela imagem desconstrutiva.
- Er... sabe, até me estou a sentir melhor, sôtor, sinto de repente um frémito cubista a subir-me pela espinha... melhor, melhor, estou a ver uma pintura a formar-se na minha mente... vejo uma mulher com 3 olhos a fritar um relógio derretido.
- Ora assim é que é falar!! Pode ir-se embora, vou já dar-lhe alta.
- Oh Dr Duchamp, você é brilhante – diz a enfermeira
- Eu sei, querida, eu sei. É do fósforo que como à noite!
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