Tuesday, August 03, 2010

Naquele dia

Naquele dia, ‘ele’ decidiu falar-nos e lá de cima, do alto do monte Canaa, perto do povoado onde vivia Pedro, ‘ele’ dirigiu-me a palavra.

- Que te enfada Miguel?
- Enfadam-me os homens – respondi – enfadam-me os homens…
- Enfada-te o que fazem?
- Não. Enfada-me o que não fazem, o que não sentem, o que não pensam.
- E é só?
- Não! Sobretudo, enfada-me que olhem o mesmo que eu, mas apenas sejam capazes de ver o que desejam.
- Mas Miguel, não vives tu entre os homens desde sempre?
- Sim.
- E desde sempre sabes que é deles a liberdade de fazer o que desejam, com o que ‘ele’ lhes deu.
- Sabes – disse por fim – é por isso que não acredito n’ele. E nem em ti.

Saturday, November 21, 2009

Maputo - África de Novo

Há um ano que não vinha a África. Apesar de algo renitente quando esta possibilidade começou a ganhar forma (ainda na semana da Gripe A), acabei por vir quase resignado.

Cheguei a Maputo ontem sexta feira, ainda de madrugada para horas de Lisboa, mas já quase 7 da manhã aqui. Fui recebido com uma chuva tropical intensa que ainda se mantém hoje.

Enquanto vinha do aeroporto para o escritório, com um pedacinho do vidro aberto a ver desfilar as cores e os cheiros de África, percebi o quanto estava com saudades. Se calhar a minha renitência em regressar depois de todo o meu tempo de África era causada pelo medo que tinha de me sentir de novo 'agarrado' a isto. E pelos vistos era justificado. África faz-me sentir em casa. Ainda. Continuo a sentir-me parte desta paleta de cores com combinações improváveis. Desta mistura de cheiros, destas pessoas e desta alegria.

Constatei também outra coisa. Tenho saudades de Luanda. Não há forma racional de o explicar. Tem poluição e stress e montes de gente. Em comparação com Maputo perde em quase tudo. Mas... sinto-a como a minha cidade e a ligação emocional é ainda muito grande. Como para já o futuro mais próximo passa mais por aqui que por lá. espero só conseguir rápido essa ligação emocional com esta cidade fantástica que é Maputo.

Achava que já era Europeu de coração de novo. Estava enganado.

Friday, November 13, 2009

Dia 5 – Quinta-feira

QUAL A SUA OPINIÃO, SÔTOR?

Acordei sem febre. Levantei-me e constatei que a cabeça parecia querer rebentar e sentia intensas dores pelo corpo. Ouch, mais um dia duro. Por outro lado a Pat está bastante melhor. Aliás, a meio da manhã disse mesmo que tinha fome, pela primeira vez na semana toda.

Durante a manhã recebi uma chamada de um amigo que estava a sentir-se adoentado e insistiu em contar-me os sintomas para saber se, na minha opinião, estaria cm gripe A. Pouco depois, a mesma conversa com um colega, desta vez pelo MSN. Foi então que me ocorreu: os gajos da linha Saúde 24, para terem menos chamadas, devem publicar os contactos de quem está doente, a ver se desviam parte das chamadas. Só pode. E a comprová-lo tive mais uma destas conversas via MSN durante a tarde.

É um cadito bizarro, mas sempre serviu para me desviar a atenção das dores de cabeça.
Hoje custou um pouco acompanhar a energia da Pat que parece estar de novo em forma.

Mas prefiro assim

Thursday, November 12, 2009

Diário de uma Gripe A

História em primeira mão de uma semana de quarentena a dois


Dia 0 – Sábado
PREOCUPAÇÃO


Depois de jantar em casa de uns amigos a Patrícia chegou a casa meio murchinha e quando a fui deitar pareceu-me quente. Medi a temperatura e tinha 37,5º . Nada de grave, pensei. Dei-lhe 10ml de ben-u-ron e fiquei descansado.

Dia 1- Domingo
MEDO

Acordámos bem dispostos. Medi a temperatura da Pat e estava tudo em ordem. Fomos tomar o pequeno almoço à rua e levar roupa à engomadoria.

A dado ponto apercebo-me que a Pat está a ficar com tosse seca. Cada vez mais até ao ponto de ser quase constante. Sinto-a de novo quente. 38,8º afinal temos qualquer coisa. Mais anti-piréticos e ficamos fechados em casa. Embora ainda nem eu nem ela soubéssemos, começava a nossa semana de quarentena em casa.

Por esta altura decido que a mãe devia saber; ligo-lhe e partilho os meus receios. A febre desce pouco com os anti-piréticos, ela tosse mas ainda n vomitou e nem se queixa de dores. Nenhum dos dois o disse, mas H1N1 estava nas nossas mentes.

Até q ao fim da tarde, a Pat vomita a primeira vez e começa a queixar-se de dores de garganta motivadas pela tosse.

Falo com a mãe que fala com a pediatra. Foi o início de várias consultas telefónicas. A pediatra pergunta se o nariz corre. Não, nada se passa aí.
– Nesse caso - diz – os sintomas estão muito próximos de H1N1, fiquem em casa, anti-piréticos de 4 em 4 horas e vamos acompanhando isso.
Por esta altura, finalmente percebo que não devo ir trabalhar na segunda.

Dia 2 - Segunda- feira
PÂNICO

A noite foi péssima. Nem eu nem ela dormimos nada. Não só ardia em febre (sempre por volta dos 39º) como tossia e se queixava das dores que tossir lhe causava.

Pela manhã constato de novo que, aconteça o que acontecer, no máximo às 8 da manhã a Pat salta da cama. Mas estava murchinha, com os olhos encovados. Desde domingo à noite que recusa a comida e só a ‘engano’ com bolachinhas e chá preto super adoçado.

Pela falta de melhoras e mesmo agravamento, a mãe recorre de novo à pediatra. De novo nos indica estar com grande dose de certeza perante a H1N1, mas recomenda que não saíamos de casa (sobretudo, que não vamos ao consultório), excepto se quisermos ir fazr a análise, mas que para ela era indiferente nesta fase. Recomenda um xarope para aliviar a tosse que continua e continuar como até aqui.

Por esta altura começo a achar q ela não nos quer é lá no consultório. Mas tendo em conta que a Pat pode ser fonte de contágio, nem sequer me choca (muito).

É então que abro o frigorífico e constato que as provisões que um gajo que vive sozinho tem em casa, podem durar muito qd na melhor das hipóteses jantamos em casa, mas são ridiculamente insuficientes para 2 pessoas em casa full time. Do mesmo modo, os antipiréticos que tinha comprado há 6 meses e estavam quase cheios, estão a chegar ao fim.

Aceito a oferta da ex de nos trazer medicamentos e mantimentos.

À noite, para além de mais uns vómitos da Pat, eu começo a ter dores no corpo, respondendo assim à minha própria questão de quanto tempo eu me aguentaria sem contágio.

Dia 3 - Terça-feira
AFINAL ISTO PASSA

Esta noite foi menos má. Pelo menos para a Pat. Começou a descer a temperatura e a tosse reduziu imenso.

Já eu, para além de imensas dores no corpo e cabeça, estava com uma terrivelmente irritante tosse seca, que antes do fim da manhã já me causava dores na garganta.
Mas as boas notícias são que a Pat tem muito menos tosse e a febre desceu gradualmente ao longo do dia. À noite estava sem febre e já tinha outro ar, ainda que continuasse sem comer nada de jeito.

Ao longo do dia tornou-se também evidente que eu iria ter que recorrer aos mesmos medicamentos que ela; a técnica de fingir que não estava doente n estava a resultar.

Dia4 – Quarta-feira
O SEU DIPLOMA POR FAVOR

Em média esta manhã acordámos os dois assim assim. Na prática, a Pat acordou bem, sem febre ou dores e eu acordei mal. Bastante pior que ontem. Febre, dores mais intensas no corpo todo, com especial incidência na cabeça e espirros.

Se por um lado ter a Pat bem descansou toda a gente, por outro lado a experiência de estar fechado em casa a cuidar de uma criança quando mal nos conseguimos mexer, não é das mais fáceis.

Mas o dia de hoje teve experiências divertidas. Hoje começou a passar a notícia de que o RC está em casa com Gripe A. Isto suscitou alguns telefonemas e várias conversas no MSN. Acabei por constatar uma coisa. Toda a gente se recusa a acreditar que possas ter Gripe A a não ser que tenhas a análise positiva na mão. É como se fosse mais importante que o certificado de habilitações.

Um gajo concorre a um emprego de Economista, Gestor, Engenheiro Civil e ninguém quer saber do teu certificado de habilitações. Acreditam. Mas c a Gripe A, não, nada disso, meu menino. Tens o quê, Gripe A? Mas tens as análieses? Ah... então não é!

Se fosse uma coisa importante eu tinha ficado deprimido, juro. Assim, o que mais me aborreceu foram os arrepios de frio, a febre alta e as dores de corpo.

Thursday, July 09, 2009

Atom-Bunker Mobile

Richard Corr estava de férias na Alemanha rural com os amigos da faculdade. Já há 13 anos que regularmente iam uma semana para um destino estranho - sempre diferente - escolhido pelo método do destino com menos votos, numa votação que faziam a 31 de Dezembro de cada ano, no Pub local.

Neste ano calhou a Alemanha profunda, em Urach, uma pequena vila onde nada acontecia, o tempo passava devagar e ninguém falava Inglês. Um requisito sempre auto-imposto nestas viagens. Tinham decidido alugar uma quinta e divertiam-se em festas e passeios de jipe pelos montes circundantes.

Naquele dia, Richard estava com Norm na beira da estrada a recolher lenha para mais um churrasco épico, quando um som rouco e descompassado de um grande camião em esforço os fez erquer a vista; Richard reconheceu imediatamente um Opel Blitz de 1944, utilizado na segunda guerra mundial pelo exército Nazi. Como apreciador de clássicos, ergue-se e observou melhor. Era um modelo militar, completamente restaurado, com a insígnia nazi e que transportava na caixa de carga uma espécie de contentor com pequenas janelas corridas junto ao tecto. Em caracteres brancos pintados no verde militar, dizia: Atom-Bunker Mobile. Bunker Atómico Móvel.

Richard ficou fascinado. Não só não fazia ideia da existência de um tal coisa na segunda guerra mundial, como o facto de estar ali a passar lentamente ao seu lado o hipnotizou. Aproveitando a lentidão do camião, claramente em esforço pelo peso e a subida que enfrentava, Richard Corr correu atrás do camião e saltou para cima da caixa de carga. Abriu a porta do Bunker Atómico Móvel e entrou. No seu interior, apenas filas de bancos corridos, forrados a napa castanha, mas ao centro, uma cadeira erguida, como se de um trono se tratasse. Richard aproximou-se e leu as letras ‘Der Fuhrer’ gravadas no encosto.

Ainda não tinha digerido este momento, quando um solavanco e um rugido do motor o depertaram. O camião ganhou repentinamente uma energia e uma velocidade absolutamente inesperadas. Circulavam seguramente a mais de 90km/h, era completamente impossível sair do camião em andamento e, de dentro do Bunker Atómico Móvel, era também impossível o menor contacto com o condutor do mesmo.

Surpreendido por ser de repente ‘prisioneiro’ do Bunker Atómico Móvel, Richard Corr resignou-se a aproveitar a espera até que o camião tivesse que abrandar, para se sentar no cadeirão ao centro e olhar pelas estreitas janelas.

Pelas janelas desfilavam árvores, ocasionalmente casa ou animais... todo um mundo e Richard sentia-se um mero espectador, fechado no seu bunker (atómico móvel) e condenado a ver a vida a passar sem ter a menor capacidade de intervir ou decidir sobre o destino. Refém de uma decisão que parecia inocente, Richard começou a ficar preocupado. Não fazia ideia em que direcção seguia, não tinha telefone, documentos ou dinheiro consigo e – tal como tinham escolhido – estava numa sítio onde ninguém falava Inglês.

Finalmente, o camião abrandou. Quase parou, na verdade. Numa rua larga no interior de uma pequena aldeia e sem motivo aparente, mas Richard não se preocupou com isso e precipitou-se para a porta. Saltou e o Bunker Atómico Móvel arrancou de novo, como se tivesse apenas abrandado para que Richard Corr retomasse controlo da sua vida.

Controlo da sua vida? Essa mesma questão corria pelo cérebro de Richard; estar perdido sem fazer a menor ideia de onde, sem contacto, dinheiro, documentação e sem conhecer a língua, não era exactamente o controlo que Richard Corr gostaria de ter.
Enquanto caminhava pela estrada, sem saber bem onde esta o levava, Richard percebeu então a suprema ironia do acontecimento. Era a sua vida toda que estava fechada no Bunker Atómico Móvel. Era lá que ele residia, impotente para decidir ou influenciar a direcção e velocidade dos acontecimentos ao seu redor.

E foi nesse momento que abriu os olhos e olhando no rosto divertido de Norm e da sua amiga Katie, percebeu que não devia ter comido aqueles cogumelos ‘mágicos’ na noite anterior.

Friday, May 22, 2009

Há dias improváveis na vida de um gajo

Um gajo acorda cedo, muito cedo, vai para o ginásio como sempre ainda com 50% dos neurónios a dormir (cerca de 1, portanto). Quando sai da garagem e descobre que, para variar numa manhã de sexta, não há 2 carros e dezenas de Angolanos bêbados a impedir a saída, que o obrigam a buzinar debaixo da janela do vizinho do 1ºA, para poder passar.

Estaciona onde quer, a meio caminho entre o ginásio e a esplanada onde depois vai para o pequeno almoço. Nos balneários do ginásio não estão as habituais reuniões de cinquentões/sessentões a discutir o benfica e política. Subimos as escadas e vamos para a passadeira onde nos recebe um – Olá Bom dia! - todo sorriente, da morenaça gira que vimos todos os dias ali mas que nunca nos tinha dito palavra. Os restantes neurónios acordam para responder e compor o sorriso e pensa-se: Olha, n sei de onde veio isto, mas é ‘siiiimpático’.

Saímos, ainda com os músculos dormentes, sem força para nos levantarmos da cadeira onde caímos na esplanada e o empregado, pela primeira vez nos anos todos que lá vou, lembrou-se de levar os guardanapos à mesa, evitando-me o sofrimento de me levantar e ir buscá-los ao interior.

Na A5 há um acidente, mas por uma vez, o trânsito está parado 100m depois da nossa saída, o que significa que não há trânsito nenhum. Depois, lugar de estacionamento à porta. Entro no escritório e antes de me sentar já me estão a oferecer um Nespresso Cosi.

Estou precisamente a bebê-lo quando me dizem: - Esse blazer fica-te muito bem, a cor é fantástica!

Um gajo de repente começa a pensar que está a acontecer alguma coisa estranha. A minha primeira reacção foi tentar pedir socorro; é óbvio que fui raptado por extraterrestres e me ligaram a uma máquina como fornecedor de energia, enquanto me alimentam por via intravenosa e me enfiam pázadas de pensamentos felizes na cabeça, para me manter quieto. Cheguei a gritar pelo Neo, que viesse na Nabucodonosor e me desligasse esta coisa. Mas sem ser o olhar espantado dos que me rodeavam, não houve mudanças nem reacções.

Sentei-me e o trabalho estava lá, como o deixara ontem. Confortante! Mas, de novo estranheza, não houve emergências e tive tempo para escrever esta coisa.

Bem, é sexta –pensei – se calhar espero até que o euromilhões acerte nos números que escolhi para festejar. Depois lembrei-me que esta sexta ia também estar num jantar com 90 pessoas que conheço à 20 anos.

E foi nessa altura que pensei: Há dias improváveis na vida de um gajo!

Friday, March 27, 2009

Urgências Filosóficas

- Dr Duchamp, Dr Duchamp!! por favor venha já comigo, acabou de entrar um caso grave de Naturalismo.
- Eh lá... isso é melhor ser o Dr Caravaggio a ver, não?
- Não Dr, a sério, ele está ali na enfermaria a pintar um quadro horrível com a bancada dos instrumentos cirurgicos. È mesmo necessária uma intervenção rápida com aplicação de Dadaísmo.
-Pronto, vamos lá ver isso.

Dr Duchamp estava a ter um dia complicado no Banco de Urgências Filosóficas. A sala de espera cheia, o telefone que não parava de tocar e até o chato do Chefe do serviço de Anestesistas, o existencialista Dr Meike Slip, hoje andava particularmente irritante.

- Oh senhora enfermeira, por favor calem-me aquele tipo na maca 6, não se cansa de gritar.... “fora os neo-platónicos, viva os relativistas, fora os neo-platónicos, viva os relativistas”, ...por amor de Deus ou lá de quem mandar nisto, calem o homem!!
- Doutor, estou farta de tentar, mas não há quem o convença a calar-se.
- Oh mulher, ligue lá para cima, para a Unidade de Gregos Clássicos, veja se eles mandam um Sofista, o Dr Gorgia ou outro, pode ser que o convençam a calar-se.
- É para já, doutor.

De facto, as coisas não estavam a correr bem. Desde a eleição do Cardeal Ratzinger como Papa, que as urgências filosóficas não registavam uma enchente desta dimensão. Dr Duchamp dirigiu-se à máquina do café, bebeu um arábica puro e por fim lá foi atender a urgência Naturalística

- Então meu amigo, conte lá como é que foi isto.
- Eu estou bem, a sério que estou.
- Sim, claro, então como justifica este quadro com a maçã do meu almoço, que acabou de pintar?
- er...
- Você sabe o que eu costumo dizer?
- Não...
- Costumo dizer que há que negar todas as tradições sociais e artísticas. Baseio sempre a minha vida num anarquismo niilista e o slogan de Bakunin: "a destruição também é criação" é o meu modo de vida.
- Sim, e então?
- E então estou disposto a partir-lhe a moldura na cabeça a ver se consigo uma bela imagem desconstrutiva.
- Er... sabe, até me estou a sentir melhor, sôtor, sinto de repente um frémito cubista a subir-me pela espinha... melhor, melhor, estou a ver uma pintura a formar-se na minha mente... vejo uma mulher com 3 olhos a fritar um relógio derretido.
- Ora assim é que é falar!! Pode ir-se embora, vou já dar-lhe alta.

- Oh Dr Duchamp, você é brilhante – diz a enfermeira
- Eu sei, querida, eu sei. É do fósforo que tomo à noite!